Paul Verhoeven é um cineasta de paradoxos. Em "Total Recall" (1990), o realizador holandês demonstra talento visual e narrativo, criando uma das obras significativas de ficção científica dos anos 90, mas não consegue - ou não quer - escapar completamente às armadilhas ideológicas que caracterizam o seu trabalho americano.
O filme revela Verhoeven como um artesão visual sofisticado que compreende os mecanismos do cinema de género para melhor os desconstruir. Adaptando livremente o conto "We Can Remember It for You Wholesale" de Philip K. Dick, Verhoeven transforma uma narrativa de paranoia individual numa alegoria sobre a exploração capitalista.
A abordagem é cirúrgica. Onde Dick via ameaças abstratas de controle mental, Verhoeven enxerta uma crítica materialista concreta: a Rekall Corporation não é apenas uma empresa de entretenimento, mas um símbolo do capitalismo predatório que transforma os sonhos em mercadoria. Os mutantes de Venusville não são curiosidades de ficção científica, mas proletários literalmente deformados pela ganância corporativa - metáfora visual sobre os efeitos físicos da exploração económica.
O realizador usa a ambiguidade central da narrativa (será tudo um sonho implantado?) como ferramenta de crítica ideológica. Se Quaid é uma construção artificial, então todo o heroísmo individual é posto em causa como ilusão fabricada para consumo de massas. A verdadeira força transformadora reside na revolta coletiva dos oprimidos marcianos, não no voluntarismo de um homem só.
Contudo, mesmo reconhecendo este lado subversivo, não se pode ignorar que Verhoeven permanece, em última instância, prisioneiro das convenções que pretende criticar. Por mais que ridicularize o herói americano, o filme mantém Douglas Quaid no centro absoluto da narrativa. A resistência marciana existe apenas em função da sua jornada pessoal; os oprimidos são libertados não pela sua própria organização e luta, mas pela ação messiânica de um indivíduo privilegiado.
Esta contradição revela o lado perverso da ideologia subjacente ao filme: mesmo quando critica o individualismo, Verhoeven não consegue conceber transformação social genuína. A visão permanece fundamentalmente cínica sobre a capacidade de ação coletiva. Os trabalhadores marcianos são passivos, esperando salvação externa. A própria Melina, representante da resistência, funciona como interesse romântico do protagonista e não como agente política autónoma.
Mais problemático ainda é como o filme, apesar do verniz crítico, acaba por reforçar fantasias compensatórias típicas do cinema americano dos anos 80 e 90. A violência espetacular, as perseguições frenéticas, a resolução através da força bruta - tudo isto contradiz qualquer sugestão genuinamente progressista. Verhoeven oferece crítica social embrulhada em entretenimento para consumidores de pipocas.
"Total Recall" exemplifica assim o desafio complexo de adaptar material ideologicamente comprometido: um cineasta inteligente como Verhoeven consegue identificar e expor as patologias do sistema, imprimindo ao filme uma energia crítica genuína, mas não pode libertar-se completamente da estrutura narrativa dickiana que privilegia o individualismo sobre a ação coletiva. O seu cinema funciona como crítica parcial mas constrangida, diagnosticando problemas que a própria matriz ideológica da obra impede de resolver verdadeiramente.
Isto não diminui os méritos artísticos do filme nem o esforço de Verhoeven - a sua energia visual, a criatividade dos efeitos especiais, a tentativa de transformar paranoia em crítica materialista são inegáveis. Mas obriga-nos a reconhecer os limites do que é possível fazer dentro dos parâmetros estabelecidos por Dick. "Total Recall" permanece como uma obra interessante porque cristaliza esta tensão: Verhoeven oferece a melhor crítica possível dentro de uma estrutura narrativa que, no fundo, sabota essa mesma crítica.
A grandeza do filme reside na inteligência com que Verhoeven expõe as fissuras do sistema capitalista; a sua limitação deriva da herança dickiana que o impede de imaginar como reparar verdadeiramente essas fissuras através da organização coletiva dos oprimidos.

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