segunda-feira, janeiro 02, 2006

A DIFERENÇA ENTRE O ESTEREOTIPO E A CRIATIVIDADE

O «Público» designou «Million Dollar Baby» como o melhor filme do ano. Uma oportunidade para identificar os seus leitores com uma entrevista dada por Clint Eastwood a Peter Bogdanovitch. Que recorda o que, já em 1968, Don Siegel dizia a propósito daquele que se tornou num dos principais realizadores norte-americanos dos nossos dias: «Clint Eastwood tem uma fixação no anti-herói. É o seu credo na vida e em todos os filmes que fez até agora insiste em ser o anti-herói. Nunca trabalhei com um actor menos preocupado com a sua imagem».
Ao seu entrevistador, Clint Eastwood conta como alcançou o aspecto visual do seu premiadíssimo filme: «Disse ao director de fotografia, Tom Stern: ‘Vamos tratar deste filme como se fosse a preto-e-branco. Se tivesse coragem filmaríamos a preto-e-branco.’ Falámos de sombras e então o que fiz, quando acabámos, foi garantir que o laboratório dessaturava a cor até ao limite. Retirei a cor, especialmente para o terceiro acto, quando vamos para o hospital, as paredes brancas, os lençóis, a nudez. Queria um ‘look’ dos anos 40. Disse ao responsável pelo guarda-roupa: ‘Vamos filmar isto como se fosse a preto-e-branco, não quero o ‘Feiticeiro de Oz’, quero que a cor seja imperceptível.»
O filme de Clint Eastwood foi um dos que, independentemente, das suas qualidades, não conseguiu evitar o decréscimo progressivo do número de espectadores nas salas de cinema: 2005 foi um ano de grande crise na indústria cinematográfica e no seu sector de exibição em particular. Os problemas agora evidentes nas salas do Paulo Branco são reflexo dessa crise.
Sobre ela escreve João Mário Grilo no mesmo «Público»:
«A questão do cinema como experiência de continuidade pode estar em risco. Hoje os norte-americanos já trabalham para filmes que integram dentro de si essa rotina de tempos fortes e tempos fracos. Ninguém aguenta uma hora e meia de montanha-russa, é preciso que ela suba e depois desça, e os filmes têm essa lógica onde há momentos em que se pode largar um pouco a atenção. O ‘King Kong’, desse ponto de vista, é um filme exemplar. Tem os intervalos metidos lá dentro: dez minutos de grande espectáculo, depois um intervalo - e esse intervalo não é um intervalo em concreto, é a parte mais humana da história, onde uma pessoa pode sair para ir comprar água, pipocas e regressar para dentro do cinema. E por aí adiante.
As coisas estão a avançar mais depressa do que as pessoas estão a ser capazes de digerir. O cinema foi a arte que mais mudou em menos tempo. E nenhuma outra arte experimentou isso.»
«Odete», filme de João Pedro Rodrigues, agora igualmente em Lisboa, não tem, por certo, essas tácticas de manipulação dos seus espectadores. Basta ler o que diz o realizador em entrevista ao mesmo jornal:
«Eu gosto do lado do cinema de observar, vem da ornitologia - a minha formação é de biologia e eu queria estudar ornitologia quando era mais novo. Por um lado, ver o tempo que demora a acção; o que tento captar sempre em cada cena e em cada emoção é o momento-chave… Gosto de filmes que nos dão a ver , por exemplo, como é que o corpo se mexe num determinado espaço. Um filme também é isso: como é que um actor vai do ponto A ao ponto B e como é que esse percurso pode ser mais ou menos interessante, contando determinadas coisas, exprimindo uma determinada emoção. Tento que haja sempre em cada plano e de um plano para o outro, uma tensão, que se passem coisas. Podem ser pequenas coisas, ínfimas, mas que sejam interessantes. (…) Para mim, os meus filmes não são uma seca. Porque acho que há uma tensão que pode estar na lentidão e não na velocidade. A coisa mais difícil no cinema é o ritmo - - as pessoas estão habituadas a ver num minuto trinta planos, em que o ritmo é dado pela montagem, e eu acho que o ritmo não é dado pela montagem. É dado pela tensão interna de cada plano, ou pela que cria com o seguinte ou com o anterior. Tento sempre ir no sentido de uma simplicidade: ter uma ideia e tentar encontrar o cerne dessa ideia, de uma maneira simples, mas que talvez não seja óbvia.»
Quem, no ano transacto, foi premiado por uma atitude de rejeição das ideias dominantes foi Harold Pinter, o drmaturgo inglês, que ganhou o Nobel. E que, desassombrado, acusou Bush e Blair de serem criminosos. «Deviam ser julgados no Tribunal Penal Internacional» pela invasão do Iraque. «Mas Bush foi esperto. Não ratificou o Tribunal Penal Internacional.»
Sobre ele escreve-se, ainda, no mesmo «Público»:
«Aos 75 anos, debilitado fisicamente por um cancro, mas com a vitalidade mental bem acesa, o dramaturgo inglês falou do seu teatro político dizendo que a objectividade era essencial, acusou os políticos de não estarem interessados na verdade mas na manutenção do poder e atacou como nunca a política externa norte-americana: ‘Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras militares de direita do mundo depois da II Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, claro, Chile (…) Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, viciosos, sem remorsos, mas muito poucas pessoas falam deles. (…) Exerceram no mundo um tipo de manipulação clínica do poder, disfarçado como uma força do bem universal. É um acto de hipnose brilhante, até perspicaz, muito bem sucedido’».
De outra forma de crime imperialista fala o realizador austríaco, Hubert Sauper, cujo documentário «O pesadelo de Darwin» substituiu «Aurora» no Nimas. Um filme aonde se demonstra uma tese muito forte: «É incrível como seja lá onde for que sejam descobertas matérias-primas os habitantes locais morram na miséria, os seus filhos se tornem soldados e as suas filhas prostitutas.»
Talvez por tudo isto, a fadista Aldina Duarte, que lança agora mais um disco, escolhe muito bem o pequeno núcleo de pessoas com quem se identifica. «São pessoas que numa época de grande barulho arriscam fazer coisas de grande intimidade - é uma forma de nos humanizar.». Ela diz que procura gente assim - tipo Tom Waits - porque lhe «faz confusão viver num mundo em que ninguém nos faz pensar».
O que essa gente faz «é uma espécie de alerta, algo que vai contra a maré».
De Clint Eastwood até à ex-mulher de Camané passámos pelo discurso de muita gente que continua a prezar um mundo às avessas das ideias estabelecidas. Seja pela estética - no caso daquele realizador norte-americano ou do de «Odete» - seja pelas ideias - no caso de Pinter - é reconfortante sentir que continua a haver quem resista, quem teime em mudar o que parece tão cristalizado, tão estagnado. Mas se, como demonstrava Galileu, até a Terra se move, muito mais se movem os homens, que nela continuam apostados em descobrir os caminhos da sua felicidade.

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