sábado, outubro 28, 2006

«Um Presente do Céu», um filme de Simone Aaberg Kaern


Durante cerca de dez anos, a artista plástica dinamarquesa Simone Aaberg Kaern trabalha no tema do voo, em associação frequente com a questão da representação da mulher.
Em 2002 ela lê num jornal a história de uma jovem afegã de 16 anos, cujo sonho maior é tornar-se piloto da Força Aérea.
Simone Aaberg Kaern, que sente intenso fascínio pelas aviadoras da Segunda Guerra Mundial, sente essa notícia como um apelo. Tanto mais que a liberdade dos céus parece perdida desde os atentados do 11 de Setembro.
Decide, pois, fazer os possíveis (e até os impossíveis …) para ajudar essa adolescente a cumprir o seu sonho. Para tal descobre um Piper Colt - o único avião para que chegam as suas posses limitadas e já vetusto nos seus mais de quarenta anos de idade. Mas com a vantagem de consumir combustível de automóvel, mais fácil de encontrar no seu périplo entre Copenhaga e Cabul.
As desvantagens não são, porém, de desprezar: só permitir dois passageiros e um máximo de 40 quilos de bagagem.
Convencido Magnus Bejmar a acompanhá-la na aventura para dela reter as imagens para o filme a realizar, a partida é dada em 4 de Setembro de 2002 … e irá durar quatro meses.
«Um Presente do Céu» é, pois, o testemunho dessa experiência audaciosa, traduzida num voo de seis mil quilómetros por toda a Europa Central e Médio Oriente , que dura cinquenta horas e passa por vinte e três escalas. Com algumas dificuldades inesperadas em Corfu (falta de combustível), na Bósnia (com o espaço aéreo fechado) e no Irão (por falta de visto e de autorização).
O momento mais complicado ocorre, porém, no percurso entre Mashad e Herat em que se arriscam a ser abatidos pelas forças norte-americanas de quem não conseguem obter a desejada permissão para entrarem no espaço aéreo afegão. Uma dificuldade, que não lhes tolhe a vontade: é em total ilegalidade, que eles aterram na sua penúltima escala antes de Cabul.
Dias depois a jovem Farial tem o seu baptismo de voo e nada parece demover a sua decisão de romper com a imagem tradicional das mulheres do seu país.
Mas depressa vem ao de cima a autoridade de um tio influente, que logo corta as asas à rapariga doravante condicionada ao peso da tradição...

segunda-feira, outubro 23, 2006

JÜRGEN STUMPFHAUS: «PERSEGUIÇÃO NO CABO HORN»

Sobre a Primeira Grande Guerra existem muitos documentários e filmes de ficção sobre as trincheiras da Flandres. E, no entanto, muitos outros episódios históricos desse mesmo período igualaram em dramatismo os descritos por Erich Maria Ramarque ou filmados por Stanley Kubrick.
A disputa bélica nos mares é menos conhecida, sobretudo as ocorridas na ponta mais a sul da América Latina.
O documentário de Jürgen Stumpfhaus tem duas grandes qualidades: o de abordar essa realidade quase desconhecida dos que a abordam à distância de quase um século e o de fazê-lo através de uma reconstituição credível no desempenho dos actores, no guarda-roupa e nos navios utilizados, que são mostrados em paralelo com as escassas imagens cinematográficas dessa época em que ainda estava longe o cinema sonoro e a cores.
O que se discute nas costas da Terra do Fogo é muito simples: quem irá dominar os mares nos anos seguintes? Os ingleses querem manter uma supremacia, que já dura há séculos, desde que afundaram a Invisível Armada espanhola. Os alemães, comandados pelo vice-almirante von Spee, apostam na inversão dessa relação de forças.
Em 1 de Novembro de 1914, ao largo da costa chilena, a frota germânica inflige uma derrota humilhante à da Royal Navy. E é vitoriada pelos muitos compatriotas estabelecidos em Valparaíso, aonde aportam antes de se dirigirem para a costa atlântica.
Chocada com essa derrota, e impulsionada por Winston Churchill, então no Almirantado, a Inglaterra prepara uma nova frota para, de imediato, procurar desforra. Ela ocorre a 8 de Dezembro ao largo das Malvinas…
À excepção do «Dresden», que consegue escapar para sul, utilizando o nevoeiro a seu favor, milhares de alemães afogam-se com os seus navios nessa batalha, que elimina qualquer possibilidade de definir nos mares quem ganharia esse conflito generalizado…
Decididos a levarem a vingança até ao fim, a frota inglesa persegue o navio fugitivo por todo o Estreito de Magalhães. E, apesar do engenho do jovem comendante Canaris, também esse navio acabará afundado nas águas da Patagónia...

domingo, outubro 22, 2006

MARTIN AMBROSCH: «MISSÃO SECRETA PARA SUA MAJESTADE»

Em 1665, quando os portugueses e os espanhóis ainda batalhavam em Montes Claros para definir se a Restauração da Independência seria ou não garantida, ocorre no Danúbio uma verdadeira epopeia para um homem culto chamado Peter Lambeck, que exercia o cargo de prefeito do Imperador Leopoldo I de Habsburgo.
A ordem dimanada se Sua Majestade era encher a recém-inaugurada Biblioteca Imperial com as mais magníficas colecções de manuscritos e de Bíblias ilustradas com iluminuras, que existissem, então, na Europa.
A missão de Lambeck não é fácil: apesar de empossado em tão relevantes funções, ele confronta-se com desconfortos tão pouco habituais para quem vivia a plácida comodidade dos cortesãos de Viena e com a oposição dos então detentores desses livros, pouco impressionados com a precedência imperial sobre a posse de documentos quantas vezes objecto de colecção há mais de duzentos anos.
O documentário de Martin Ambrosch procede a uma rigorosa reconstituição histórica, atribuindo a actores os papéis desse prefeito, do seu valete, dos mal encarados marinheiros que o acompanham rio abaixo e de quem com eles se vai encontrando pelo caminho.
Pernoitam em albergues pestilentos cujo conforto se limitava a uma lareira para aquecimento de uma divisão aonde os hóspedes comiam e dormiam sem que lhes fosse facultado qualquer talher ou prato, e muito menos um colchão.
A viagem pelo rio é um tormento com os marinheiros a embriagarem-se, com o leme a partir-se deixando-os à deriva e com alguns dos valiosos manuscritos a tombarem nas águas.
Ao chegar a Viena com a maior parte da sua valiosa carga, Peter Lambeck pode ufanar-se de ter ultrapassado tormentosos obstáculos e de nunca ter pensado em desistir da sua missão.

A PROPÓSITO DE UM CONVITE

A blogosfera anda um bocado agitada com a presença do Partido Comunista Chinês no próximo Congresso do Partido Socialista. Tanto mais, que anda a circular um filme mal amanhado em que se vêem Guardas Fronteiriços chineses a dispararem sobre um conjunto de pessoas em fuga através da fronteira com o Nepal.
Daí a voltar à baila a velha questão dos Direitos Humanos espezinhados foi um ápice. Com comparações maldosas em relação a supostos terroristas colombianos, que terão marcado presença na recente Festa do Avante…
A generalização pretendida é clara: a esquerda, seja na sua variante comunista, seja na socialista, relaciona-se com quem não respeita as opiniões alheias, prendendo, torturando e assassinando todos quantos ponham em causa a legitimidade do seu poder.
É escandalosa essa «indignação» da parte de quem despudoradamente a revela, sobretudo, quando nada teriam a dizer se fosse ao Partido Republicano norte-americano que tal convite fosse endossado.
E, no entanto, foi esse mesmo partido quem lançou na guerra do Iraque milhares dos seus jovens para servirem de carne para canhão e defenderem os interesses das companhias petrolíferas texanas e das Halliburton, que haviam sustentado a fraude eleitoral pela qual George W. Bush foi colocado na Casa Branca.
A China comunista, agora presente no Congresso socialista conta com muitas virtudes e com muitas razões para ser criticada. Mas decerto não avançou com políticas imperialistas, que causassem 650 mil mortos num qualquer Iraque, como ocorreu com os EUA.

sábado, outubro 21, 2006

UMA «NOVA» ALEMANHA

Oradour-sur-Glane: uma comunidade que aí vivera por mil anos é dizimada numa tarde. E tudo começara uns anos antes, em 1933, quando o Partido Nacional-Socialista chega ao poder numa Alemanha devastada pelo desemprego, pela desmoralização , sobretudo, quando eleitoralmente estava em queda.
Ainda assim, socialistas e comunistas julgavam tratar-se de fenómeno passageiro, condenado pelas circunstâncias imediatas. Mas estas - sobretudo representadas pelo incêndio do Reichtag - irão concorrer para a suspensão dos direitos civis e do Parlamento.
Hábil na condução e na criação de acontecimentos, Hitler anuncia uma Nova Alemanha, que perduraria por mil anos. É na mesma altura em que comunistas, socialistas, deputados e jornalistas começam a ser internados nos primeiros campos de concentração, então geridos pelas Secções de Assalto (SA), a face mais trauliteira das milícias nazis. Os mesmos que dão corpo à política de boicote às lojas de judeus e aos autos-de-fé de livros considerados subversivos. Ora, um século antes, o poeta Heine escrevera que «aonde se queimam livros não tardarão a queimar-se pessoas».
Nessa altura a maioria dos judeus mais abastados ainda julgavam sem futuro essa vertente extremista da propaganda nazi.
Os principais apoiantes do novo regime são os desempregados, os comerciantes arruinados pela Depressão, os agricultores e camponeses, os funcionários públicos cujas poupanças haviam desaparecido por efeito da carestia de vida.
Havia, igualmente, uma camada da população inconformada com os termos em que havia sido firmado o Tratado de Versalhes, que retirara da antiga Alemanha os territórios da Alsácia, da Lorena, do Sarre, da Galícia e a cidade de Danzig.
No Natal de 1933 o regime de Hitler estava fortalecido, embora os SA já fossem um estorvo para os planos futuros do chanceler. Já devia pairar pela sua mente o assassinato de cerca de duas centenas das suas principais figuras naquela que viria a ser conhecida pela Noite das Facas Longas (30 de Junho de 1934). Um episódio, que permitiria confirmar a inexistência de pruridos formais para afastar todos os obstáculos à estratégia delineada pelos títeres do regime.
E, quando, em 2 de Agosto de 1934, o Presidente Hindenburg morre, Hitler extingue essa função política e proclama-se Führer, chefe supremo do povo alemão e do seu exército.
Quando referenda a sua ditadura, Hitler lança uma campanha de propaganda, que lhe garante 90% de votos: Mas, ainda assim, avessos a ela, quatro milhões de alemães não se inibem de votar não.
A situação económica, já estava em franca recuperação, quando eles chegam ao poder, melhora significativamente e os nazis não deixam de aproveitar essa constatação empírica da maioria que os apoia.
A construção da primeira auto-estrada, que ligava Berlim à província, permitirá o rápido avanço dos tanques, quando eles estiverem preparados para a ocupação dos países vizinhos. Mas, enquanto isso não ocorre, fomenta-se a histeria colectiva em comícios encenados com competência, enquanto as actualidades cinematográficas são férteis em imagens de Hitler no seu retiro de Berghof a acarinhar crianças, a brincar com os seus cães e a conviver com Eva Braun e muitos dos dignitários do seu regime.
O rearmamento começa a ganhar um ritmo avassalador: aparecem novos blindados, os primeiros esquadrões da Luftwaffe voam nos céus e a nova marinha sai dos atarefados estaleiros. Embora os seus generais considerem extemporânea a decisão de partir para a guerra, Hitler proclama extinto o Tratado de Versalhes.
A recuperação dos territórios nele perdidos já começara a ocorrer em 1935 quando, sob acompanhamento internacional, a população do Sarre vota o regresso desse território à Alemanha. A Renânia é anexada em 1936 e a Áustria em 1938.
A minoria alemã na Checoslováquia é estimulada para manifestar-se contra uma suposta agressão das autoridades de Praga e possibilita a anexação do território dos Sudetas, sem que os aliados desse pequeno país (Inglaterra, França e URSS) reagissem.
As prepotências sobre a comunidade judaica vão subindo em escalada: em 1938, na sequência do assassinato de um diplomata alemão em Paris a violência torna-se descontrolada na que será conhecida como a «Noite de Cristal», quando se incendeiam sinagogas, se vandalizam lojas e se prendem ou assassinam indiscriminadamente quem se suspeita de não caber na classificação de arianos.
Em Abril de 1939 a Wehrmacht protagoniza a festa do 50º aniversário de Adolf Hitler. O seu alto comando ainda duvida do sucesso de uma agressão à Polónia, mas o Fürher já decidiu: exige a devolução de Danzig e um corredor de acesso através do território desse vizinho.
Uma vez mais, umas até então quase anónimas minorias germânicas reclamam a defesa dos seus interesses e dão o ensejo para a agressão.
No entanto os estrategas alemães conseguem um golpe de surpresa, que abana as certezas dos que se preparam para travar a iminente agressão: voando para Moscovo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich, Ribbentrop, consegue firmar com Estaline e com Molotov um Pacto de Não Agressão.
Já nada pode impedir a Wehrmacht e a Luftwaffe de avançarem: inicia-se a mais devastadora Guerra até então conhecida pela Humanidade.

segunda-feira, outubro 16, 2006

THEODOR ADORNO E A ESCOLA DE FRANCFORTE

Nos anos 20, graças ao mecenato de um negociante de cereais, nascia o Instituto de Pesquisas Sociais, que tornaria conhecidos Max Horkheimer e Theodor Adorno como expoentes de uma nova teoria de pensamento crítico, que procurava expurgar o marxismo dos seus dogmas e adequá-lo à realidade de uma sociedade em plena efervescência e mutação. A tal ponto que, quase sem se fazerem anunciar, os nazis chegam ao poder e obrigam ao exílio norte-americano esses ideólogos esquerdistas cujos livros alimentavam os autos-de-fé daqueles.
No outro lado do Atlântico, Adorno mantém um reconhecimento quase filial pelo seu mestre, que muito contribuíra para lhe salvar a pele e lhe garantir a sobrevivência nesse exílio forçado.
Quando, terminada a guerra, Horkheimer e Adorno regressam, estimula-os o projecto de contribuírem para a difusão dos ideais de liberdade e de democracia junto dos seus compatriotas ainda então sujeitos a campanhas de desnazificação.
Em 14 de Novembro de 1951 o Instituto é reinaugurado com pompa e circunstância, ficando dependente da Universidade de Francforte.
Os seus impulsionadores têm, então, uma justificada notoriedade entre os seus concidadãos. Mas logo despontam os críticos, sobretudo os que se desinteressam de qualquer explicação quanto á agudização do anti-semitismo entre os alemães, preferindo seguir em frente como se Auschwitz jamais houvesse existido.
A «Teoria Crítica» criada nessa Escola de Francforte interpreta a realidade a partir das ideias de Hegel e de Karl Marx e procura suscitar o pensamento crítico nos estudantes ao invés do que se passa a leste, aonde impera a tradição escolástica de considerar o Ser quem determina a Consciência.
É uma época muito estimulante para Adorno, que se interessa igualmente pela música experimental, participando ao lado de Boulez, Nonno ou Stockhausen na Universidade de Verão de Darmstadt.
Horkheimer já é, então, uma caricatura do filósofo brilhante do passado: cioso das mordomias das suas funções de reitor universitário, ele esconde na medida do possível os seus textos dos anos 20, que explicitavam a sua condição de comunista e vai ao ponto de contratar para o seu estabelecimento alguns académicos outrora proscritos pelo seu comprometimento com o regime nazi. Mas Adorno, apesar de nunca atravessar a fronteira, que separa o Bem do Mal, nunca se distancia do seu antigo protector. Nem mesmo, quando Habermas, brilhante professor do Instituto, é despedido devido ao seu pensamento demasiado conotado à esquerda.
Em 1959, Adorno chega à direcção do Instituto, sendo dessa época a sua conhecida afirmação: Quando o mundo não é senão desolação, as pessoas não podem senão sentirem-se desoladas. As suas aulas no mais vasto anfiteatro da escola atrai centenas de estudantes, que se acotovelam para conseguir aceder ás suas esclarecidas palavras. Mesmo que elas transmitam uma ideologia desesperada e sem solução, muito próxima do «esquecimento do Ser» de Heidegger, que, no entanto, se situa nos antípodas do seu posicionamento político.
Na contestação à guerra do Vietname através da música pop, Adorno entrevê algo de significativo, mas de paradoxal: surgido como movimento ideológico de cariz anti-capitalista, os seus militantes consomem música pop numa quantidade tal, que faz esfregar as mãos aos capitalistas responsáveis pela distribuição desses sons, em aparência, irreverentes.
Para Adorno a sociedade de consumo comporta fatalmente o individualismo, a atomização do Ser e, como tal. A impossibilidade da Revolução baseada no colectivo.

Ainda assim, ele vê com simpatia os movimentos estudantis em 1968, embora a sua violência intrínseca o levem a distanciar-se racionalmente. Ele entende que a Universidade não deve ser sede de revolta, mas de pensamento.
Regressado ao Instituto, Habermas não tem dúvidas e identifica-se totalmente com esse movimento, que Adorno classifica de «esforço desesperado para modificar a sociedade» sem que tal seja possível. A sua posição ainda mais se torna incómoda quando, vindo dos EUA, o filósofo Herbert Marcuse apoia a causa estudantil, que reflecte as conclusões do seu best seller «O Homem Unidimensional».
Quando a situação se agudiza e os estudantes ocupam o Instituto é Adorno quem pressiona o reitor da Universidade para recorrer à polícia como forma de garantir a evacuação daqueles estabelecimentos.
A traição de Adorno leva os estudantes a desconsiderarem-no, a sentirem-no como um inimigo. Não se estranhará, pois, que uma brigada feminista semeie o caos numa das suas aulas de 1969, despindo o tronco e expondo-lhe os seios como meio de o acusar de sexista.
Mortificado ele não voltará a ser o mesmo e morrerá de ataque cardíaco alguns meses depois.
Mas fica para a posteridade a sua importância na criação de uma escola de pensamento, que não soube desenvolver até ao fim as suas premissas fundadoras: a de descortinar caminhos sustentáveis para o marxismo. O seu pessimismo, pelo contrário, traduz um impasse filosófico, que ele não soube ultrapassar...

sexta-feira, setembro 22, 2006

«LUZ FRIA» de HILMAR ODDSON

É a história de um artista traumatizado pela culpabilidade e da forma como irá recuperar o gosto pela vida.
Grimur tem um dom: pode prever o futuro. Mas sempre viveu esse dom como uma maldição.
Criança de imaginação fértil, costumava desenhar frequentemente essas previsões.
Um dia, ele tem a premonição de uma avalanche, que ameaçará a aldeia de pescadores em que vivia. Desenhou-a sem, porém, convencer ninguém desse acidente iminente. Ora, essa avalanche soterrará toda a sua família. Trinta anos depois, enquanto único sobrevivente da catástrofe, ele ainda sente remorsos. As imagens do passado perseguem-no e perturbam-no, quer no seu trabalho de pintor, quer na sua relação afectiva com a companheira, que deseja um filho.
Para ser bem sucedido na vida, Grimur terá de começar por fazer as pazes consigo mesmo...
As imagens são hipnóticas ao utilizarem a luz e as paisagens islandesas. As cores vivas e doces do Verão são substituídas pela luz azul e fria de Inverno. As paisagens transformadas reflectem a vida interior do personagem principal, que ora espera, ora desespera...
A natureza é uma personagem central neste filme dotado de excelentes actores e uma fotografia magnifica.
A história baseia-se no romance de estreia de uma jovem escritora islandesa, Vigdis Grimsdottir, e o realizador, Hilmar Oddsson assina um filme melancólico e belo, profundamente ancorada a esta terra islandesa…

segunda-feira, agosto 28, 2006

Relâmpagos na cabeça

Os motivos podem ser variados: tumores (que obrigaram a operações, meningites), longas paragens cardíacas ou, mesmo, sindromas de nascença. Em qualquer dos casos apresentados no documentário de Mirchka Popp e de Thomas Bergmann, o que vemos é a realidade através do que sentem pessoas disfuncionais devido a lesões cerebrais.
Há os que tudo esquecem de um dia para o outro, sendo obrigados a aprenderem tudo de novo ao acordarem. Quem não controla sucessões imparáveis de tiques nervosos. Quem vê tudo quanto se mexe completamente desfocado. Quem só tem um lado do cérebro a funcionar para ver ou ouvir. E tantos, tantos casos, quantas as pessoas dispostas a partilharem com a câmara a tristeza e a inquietação por se sentirem diferentes. Apesar da sua inteligência, muitas vezes acima da média.
Vimos essa hora e meia com o fascínio voyeurista, que nos é comum perante este tipo de temas, mas também a compreendermos quão débil é a fronteira entre a normalidade e o que não é. Podendo ser subitamente atravessada de forma involuntária…
Houve um caso, que me impressionou particularmente: o de um homem, que perdera uma grande parte das suas capacidades, quando sofrera uma paragem cardíaca durante um jogo de futebol e estivera demasiados minutos sem qualquer irrigação sanguínea do seu cérebro. Autêntica criança, com esquecimentos frequentes até da identidade dos familiares, ele passou a representar um tal sacrifício para a mulher e para os filhos, que, já após a rodagem das cenas a ele respeitantes, foi internado num lar. Ora, a mulher justificara perante os realizadores, que se sentia com forças para dele cuidar em nome dos vinte e dois anos de felicidade conjugal, que conhecera a seu lado.
Este pequeno exemplo serviu para relativizar tudo quanto hoje parece fundamental e, amanhã, parece perder essa importância…

domingo, agosto 27, 2006

A Evocação de «O Último Tango»

Não adiantou grande coisa o documentário do Serge July e do Bruno Nuytten sobre a importância de «O Último Tango em Paris» na sociedade ocidental do início dos anos 70.
O realizador, Bernardo Bertolucci, recordou que Trintignant e Dominique Sanda haviam sido as suas primeiras escolhas para os papéis de Paul e de Jeanne, mas o primeiro recusara por pudor e a segunda por estar grávida.
Frustrada, assim, a hipótese de reutilizar o par de «O Conformista», o realizador procurou alternativas em Belmondo e em Delon. Que se frustraram …
Marlon Brando que, na época, era tido em Hollywood como um «has been» acabou por aceder no papel desse homem recem-enviuvado, que irá viver uma relação violenta com uma rapariga durante dois dias.
Maria Schneider fora escolhida através de um «casting», depois de referenciada nas noites de boémia no Castel.
Da «nouvelle vague» veio Jean Pierre Léaud, que sentia-se aterrorizado por contracenar com Brando.
Mas teve sorte: sindicalista militante, o norte-americano recusava o trabalho ao sábado, pelo que se rodavam nesses dias as cenas com o conhecido actor de Godard e de Truffaut.
É claro que o documentário vão localizar todo o seu interesse na célebre cena da sodomia com manteiga. Que foi uma autêntica violação, já que Maria Schneider desconhecia a sorte para ela reservada nesse dia. Bertolucci procurava que a sua reacção de choro e de revolta fosse o mais realista possível. Conseguiu-o mas o futuro não seria grato para a actriz, de quem não se voltaria a descolar aquela imagem. Por isso ela não voltaria a dirigir a palavra ao realizador. E reconhece que, hoje, chamaria a Justiça para formalizar a queixa quanto à agressão sexual inerente a essa cena.
No documentário Germaine Greer, a conhecida feminista, não contesta o valor artístico do filme, mas considera completamente oco o papel feminino principal, reduzida a mero objecto de submissão da catártica obsessão suicida de Paul. Mas, ainda assim, o filme contribuiu - e muito - para abanar os valores morais da época. E esse é o aspecto em que o documentário se mostra mais pobre: se evoca as sucessivas revoluções desses anos, não aprofunda o quanto elas significaram a ruptura com o conservadorismo pudico dos anos anteriores.
A Revolução Sexual, mesmo que limitada nos seus resultados, tornou muito mais liberta a sociedade em que vivemos...

domingo, agosto 20, 2006

Coragem portugueses?

Ontem houve uma tentativa de assalto a uma agência bancária em Almada. Um desempregado, já com a vida toda feita num cangalho, julgou encontrar solução naquela estratégia sem cuidar de saber que, hoje em dia, as caixas deste tipo de agências já pouco dinheiro acumulam.
Durante três horas o homem barricou-se no edifício e foi negociando com a polícia. Só depois se saberia que as duas armas com que ameaçava a integridade dos reféns eram de plástico. E que ele era um antigo operário de construção civil, divorciado e já há várias semanas sem contacto com o filho, completamente desesperado com o atoleiro em que se vira. Agora, com os polícias, só lhe restava uma obsessão: não ser reconhecido. O que equivalia a sair dali com a cabeça tapada… Os que ali se puseram a assistir aos acontecimentos reproduziram uma das variantes da psicologia de massas do fascismo, abertamente xenófoba:
- Parece que é um preto! - aventava um.
- Não, não é assim tão escuro… Acho que deve ser brasileiro … - previa outro.
Este exemplo é eloquente quanto ao estado das consciências dos portugueses. Formatados pelos jornais desportivos, que cultivam a clubite mais doentia, ou pelas revistas femininas, apostadas em divulgar as mais inconcebíveis histórias de alcova, os nossos compatriotas fazem lembrar aquele célebre poema de Almada Negreiros, que dizia mais ou menos assim:
- O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem Portugueses, só vos faltam as qualidades.
É claro que os nossos compatriotas não têm toda a culpa por essa situação: o consumo desse tipo de informação inócua, ou mesmo perversamente maligna, é atiçada pelos grandes grupos económicos nacionais, os mesmos que reclamam contra os sindicatos, contra a produtividade dos portugueses e contra a esquerda em geral. Os mesmos que alimentam a ignorância e o cepticismo face aos políticos. E que fomentam o racismo mais primário...
Seria bom converter jornais, rádios e televisões em ferramentas de informação dos portugueses. Mas é a vacuidade dos seus filmes e das suas notícias, que prevalecem.
Depois admiram-se com os resultados dos jovens portugueses nos exames nacionais…
Pudera! Com coisas do tipo «Morangos com Açúcar» ou com a «Floribella» não admira que, desde as mais tenras idades, seja a mais tonta recolha de valores, que se torna dominante...

sábado, agosto 19, 2006

Podemos lembrá-lo, mas nunca celebrá-lo!

O centenário de Marcelo Caetano serviu de pretexto para um conjunto de reportagens televisivas e de artigos de jornal sobre a sua condição de ditador derrubado pela Revolução de Abril de 1974.
Se em muitos desses trabalhos não se iludiu o carácter reaccionário do seu pensamento político - excelente, por exemplo, o ensaio de Vasco Pulido Valente no «Público - noutros enfatizou-se em demasia o papel do ditador enquanto professor de Direito.
Eu que vivi todo o seu consulado numa altura fundamental para a minha formação enquanto indivíduo, não posso esquecer a personificação em Marcelo de tudo quanto, então, sentia de repressão, de castração mesmo do que, enquanto jovem, aspirava.
É com ele que conoto essa ameaça de partir para uma Guerra Colonial para a qual não sentia a mínima predisposição.
É com ele que conoto todo um fascismozinho doméstico em que a moral e os bons costumes contrariavam a mais natural emoção amorosa. O Portugal maledicente, que se alimenta de boatos e de mentiras, não nasceu com as actuais revistas de coscuvilhices: estas mais não aproveitam, que uma herança larvar, ainda bem presente na cabeça de muitos portugueses.
É com ele - um hipócrita ateu, que se usava do obscurantismo religioso difundido pela Igreja - que se continuou a fomentar o misticismo em torno de Fátima na expectativa de distrair os cidadãos de outras crenças mais eficazes.
Foi no tempo de Marcelo, que prosseguiram as investidas da Polícia de Choque ao campus universitário do Campo Grande, sob a égide de gente sem escrúpulos como o eram e são José Hermano saraiva ou Veiga Simão.
É com ele que Ribeiro Santos é assassinado e que muitos caixões continuaram a vir de África.
É com ele que o Padre Sobral era frequentemente levado para Caxias, só voltando passadas semanas.
É com ele que o país estava «orgulhosamente só» e ser identificado como português no estrangeiro era motivo de vergonha.
Cem anos passados sobre o seu nascimento podemos lembrá-lo como protagonista das negras páginas vividas em Portugal na viragem dos anos 60 para os anos 70. Mas é-nos impossível homenageá-lo ou celebrá-lo como pretendem alguns.
Há crimes, que não merecem perdão. E Marcelo foi responsável por muitos eles...

quarta-feira, agosto 16, 2006

«War Photographer», um documentário sobre James Natchwey

James Natchwey leva à letra aquilo que Robert Capa dizia: «If your pictures aren’t good enough you’re not close enough». Por isso ele quase se cola às pessoas, que se transformam em protagonistas das suas imagens.
Christiane Amanpour, a conhecida jornalista da CNN define-o como um grande solitário, que é de uma obstinação extrema no seu trabalho.
Christian Frei, o realizador do documentário, acompanha o fotógrafo enquanto ele capta imagens da mulher bósnia, que chora a perda dos seus familiares, seguindo-a mesmo até dentro do seu casebre. E, na redacção da «Stern» acompanha a discussão entre o chefe de redacção e outros colaboradores sobre as imagens dele recebidas dos Balcãs. Aonde se constata uma óbvia alteração no conceito de guerra, tal qual existia antes da queda do Muro de Berlim: se os conflitos costumavam acontecer entre países, passaram desde então a ocorrer entre povos do mesmo país. Mesmo que com recurso a meios muito menos sofisticados, como ocorreu no Ruanda.
Mas o problema com os fotógrafos de guerra («que foram ver a fuzilaria», como diria António Gedeão), a questão impõe-se: não existirá uma certa pornografia na forma como exploram a violência? Nomeadamente nessa forma abusiva como se aproximam de quem sofre?
Em entrevista Natchwey conta que decidiu ser fotógrafo nos inícios dos anos 70, quando se vicia a guerra do Vietname e era óbvia a dissonância entre o que as imagens revelavam e o discurso dos responsáveis políticos norte-americanos. Foi quando entendeu a capacidade das imagens para se tornarem em testemunhos do que acontece a pessoas vulgares, quando apanhadas no turbilhão de acontecimentos extraordinários.
Embora tenha sentido a dificuldade de acreditar nesse percurso, quando o empreendeu, a partir dos anos 80, foi na convicção de encontrar na disciplina do enquadramento o conhecimento aprofundado do mundo em que vivia.
Mas o documentário deixa dúvidas sobre a capacidade para evitar a manipulação de quem faculta o acesso aos locais a fotografar: em Velika Krusa, ele e Christiane Amanpour vão ao local aonde estão acumulados duzentos corpos de fuzilados. Mas, envoltos em plástico, quem nos diz da veracidade dessa condição de vítimas de um genocídio recente? E as crianças que, oportunamente, aparecem a trazer flores para homenagear esses mortos não protagonizam, involuntariamente, uma forma de acentuar esse horror?
Natchwey reconhece só lhe serem possíveis as suas imagens com a cumplicidade activa de quem ele capta. Quanto mais por isso, o fotógrafo não consegue ser uma testemunha imparcial da História já que depende dessa cumplicidade com os fotografados. Que dele se servem, conscientemente, enquanto veículo de denúncia perante o mundo das injustiças de que estão a ser vítimas…
Hans Hermann Klare, chefe de redacção da «Stern», reconhece que Natchwey mudou desde que o conheceu, muito por efeito dos horrores visitados pela sua objectiva. Por exemplo os do Ruanda, que o levam a interrogar-se sobre o que poderá inspirar tanto ódio. Algo que ultrapassa qualquer entendimento…
Tanto mais que, semanas depois de fotografar os efeitos dos massacres no país sobre os tutsis, ele dirigiu-se aos campos de refugiados de Goma aonde os hutus estavam a ser dizimados aos milhares por uma epidemia de cólera. Como se ali tivessem tomado o expresso em direcção ao Inferno…
Na Indonésia ele fotografa pessoas, que construíram abrigos precários ao longo da via férrea. É outra vertente da sua actividade: testemunhar a pobreza dos mais desvalidos de entre os desvalidos deste mundo. Gente que veio do campo em busca de sustento nas grandes cidades e que só arranja trabalhos miseráveis, insuficientes para lhes garantir condições mínimas de sobrevivência. O caso dos respigadores das lixeiras de Jacarta. Ou dos que trabalham nas irrespiráveis minas de enxofre a céu aberto.
Mesmo nos países supostamente elogiados pela sua «recuperação económica», uma parcela significativa da população em nada dela beneficia. Por isso o interessou tanto o derrube de Suharto. Porque as multidões que, nas ruas, exigia o seu afastamento, estava eivada da emoção de quem se pretende libertar de uma pesada canga repressiva.
Do tempo passado em África, Natchwey traz uma certeza: a fome é uma forma primitiva, mas bastante eficaz, de genocídio. E as fotografias terríveis obtidas em campos de refugiados até não dão toda a dimensão dessa tragédia: como seriam as que seriam obtidas em sítios aonde não existem essas formas de apoio às vítimas desse flagelo?
Mas para o repórter de guerra a divulgação das suas imagens está cada vez mais difícil: vivemos numa época hedonista aonde o que vende são as imagens glamourosas de artistas e de moda. Quem paga publicidade nas revistas não quer ver o que nelas possa incomodar os seus potenciais consumidores.
E, no entanto, é urgente olhar a realidade de frente. Fazer qualquer coisa para a modificar.
A esperança, para Natchwey, é que as suas imagens contribuam para essa candente evolução...

«Local Angel»: fragmentos políticos e teológicos de Udi Aloni

Com uma piscadela de olho Deus criou uma multidão de anjos, condenados a cantar louvores e, depois, a desaparecerem. Para escapar a esta triste sorte um anjo pode adoptar um humano e disfarçar-se de anjo da guarda.
Mas cansa-se depressa porque é angélico e o homem cheio de vícios. Nessa altura só lhe resta a vontade de cantar os louvores ao Senhor e desaparecer. Mas o homem não quer deixá-lo partir. O anjo tornou-se o seu pequeno Deus pessoal e ama-o tanto que está disposto a tudo - a súplicas, a manha, se necessário à força.
Oito anos atrás Udi Aloni trocou Israel por Nova Iorque. Um mergulho numa espécie de capitalismo visual cheio de néons e de grandes cartazes nas fachadas. Um contexto muito adequado para a sua própria estética pictórica de grandes dimensões, protagonizada por anjos a afastarem-se do seu passado. Pejado de ruínas relacionadas com massacres, genocídios e outras formas de injustiça. Como a da Shoah, sentida como herança incontornável de uma identidade contraditoriamente sentida.
No regresso a Israel ele tenta compreender o momento político à luz da tradição talmúdica, que atribui uma particular veneração ao Monte do Templo, local emblemático da tradição judaica porque associado ao mítico sacrifício frustrado de Isaac por ordem divina. Ora, ocupado agora pela Mesquita Al Aqsa, os sionistas não têm condições para venerarem como desejariam esse símbolo da sua tradição. Por isso substituíram essa veneração ao Monte do Templo pelo mesmo sentimento em relação ao seu Estado, a quem respeitam enquanto ferramenta de Conhecimento e de Revelação. Um Estado apocalíptico, sempre à beira do abismo, como se a sua perspectiva futura não fosse a destruição, mas a reconstrução.
Udi Aloni também questiona uma célebre profecia do sábio Gersham Sholam que, em 1926, alertava quanto aos riscos de expansão da língua hebraica, porquanto ela perderia, dessa forma, o seu carácter simbólico.
Numa abordagem mais prosaica do que é o judaísmo de hoje, Udi leva-nos a conhecer a mãe, que fundou o Movimento dos Direitos do Homem, em Israel, para dar apoio a quem dele careça. Judeus, árabes ou de qualquer outra origem racial.
Ela execra os rabinos, que se orgulham da sua fé e defendem a destruição criminosa dos que a não professam.
Uma das amigas da mãe, aqui entrevistada, é a antiga ministra Hanan Ashrawi, que se vive hoje numa época muito perigosa devido à tentativa inimiga de desumanizar os palestinianos, arrasando-lhes as casas, como se eles tivessem culpa de existir.
Nas conversas com a mãe ou com Arafat, Udi Aloni defende o princípio de dois Estados independentes a viverem lado a lado, cumprindo o plano original de seis décadas atrás. E escandaliza os seus compatriotas ao solicitar perdão ao defunto líder palestiniano por cinquenta anos de sucessivas agressões israelitas nos últimos cinquenta anos.
Para ele não existe qualquer dúvida: o fundamentalismo palestiniano alimenta-se do próprio fundamentalismo israelita. A tragédia foi essa transição para o campo religioso de uma abordagem racional, só possível numa perspectiva laica.
Mas a esperança numa solução pacífica é logo condicionada pela diferença de opiniões entre Udi e a mãe a respeito do direito de retorno dos palestinianos desalojados em 1948. Mesmo progressista a anciã recusa essa hipótese que, por razões demográficas, depressa poria um ponto final ao Estado judaico. Ora Udi evolui o seu pensamento ao longo documentário ponderando na exequibilidade de existir apenas um Estado binacional onde todos se respeitem nas suas diferenças.
Para as mães de um e de outro lado a urgência é pôr um fim ao sacrifício dos filhos…

segunda-feira, agosto 07, 2006

As infelizes circunstâncias

«A Casa Quieta» do Rodrigo Guedes de Carvalho foi uma boa surpresa, agora que o acabámos de ler.
A princípio a influência do António Lobo Antunes condicionou a nossa apreciação: afinal um seguidor raramente se pode comparar a quem o inspirou. Mas, passadas as primeiras páginas, as opções estilísticas do autor foram-se definindo e dissociando de uma lógica de pastiche.
A história é muito simples: Mariana vai morrer de cancro, depois de uma vida quase inteira passada ao lado de Salvador.
Teria sido uma relação perfeita se existissem filhos (mesmo que só tardiamente os procurassem) ou se um incidente de vinte anos atrás não acinzentasse tudo quanto depois haviam vivido. Uma confissão de infidelidade de Salvador quando escalavam Nova Iorque antes de visitarem as irmãs de Mariana no Canadá.
Esse episódio voltará a mostrar-se pertinente quando, em vésperas da sua morte, Mariana exigirá dele a revelação da identidade dessa fortuita amante. E, não o conseguindo, invectiva-o por ter sido um verdadeiro salafrário, que tudo deitara a perder…
Mas Salvador era perdedor em muitos outros tabuleiros. Por exemplo, enquanto arquitecto, jamais conseguira criar uma casa sua, dispersando pelas muitas saídas do seu estirador os pormenores daquela virtualidade.
Não conseguira, igualmente, ajudar o irmão, António, condenado à irreversível loucura muitos anos passados sobre os traumas acumulados na experiência colonial.
Frustração, enfim, com um pai quase obsessivo na forma como orientara toda a sua vida e com quem jamais entabulara uma conversa franca nos jantares marcados para o mesmo restaurante de sempre.
«A Casa Quieta» acaba por ser um romance de amores infelizes. Porque dependiam de realizações profissionais, que jamais haviam ultrapassado a dimensão mediana dos talentos limitados. Mas, sobretudo, porque Salvador e Mariana perderam pelo caminho a capacidade para fazerem do seu Amor a obra de arte mais perfeita...

domingo, agosto 06, 2006

O mito da inocência infantil

No balanço do que foi e será este ano de 2006, quando se equacionar o ocorrido na Justiça será bem negra a página em cujo rodapé figurar a sentença do caso do transexual assassinado no Porto.
A pena aplicada aos criminosos deveria levantar um coro de indignação que, infelizmente, não se faz ouvir neste país encerrado para férias.
A decisão do Tribunal acaba por insultar o sofrimento da vítima e por desculpar a perversidade dos homicidas. A quem a idade serve de desculpa …
Ora, já se encarara com este cenário no caso de pedofilia na Casa Pia em que as crianças foram sacralizadas como vítimas inocentes e os seus clientes diabolizados e sujeitos a ostracismo colectivo.
E assim se criou um mito em nada consonante com a realidade, que traduz a realidade numa perspectiva maniqueísta em que as crianças são sempre inocentes e os adultos culpados, ora de serem diferentes (no caso de Gisberta), ora de se socorrerem do sexo pago para se satisfazerem.
A realidade é, claramente, outra. As crianças podem ser adoráveis e ternurentas, mas também conseguem ser odiosas e viciosas.
E se provém de origens sociais em que a desestruturação do quadro familiar suscita uma negação dos valores comummente aceites, temos delinquentes em potência, que não olham a meios para satisfazerem os seus desejos. Que podem ser sexuais - porque nem o inefável dr. Pedro Strecht conseguirá negar existirem na criança desde que nasce - ou de mera aquisição de bens de consumo.
Embora desconhecendo qualquer das alegadas vítimas desse caso de pedofilia, conjecturo a possibilidade de algumas delas até nem terem sentido problemas de consciência em prostituírem-se para auferirem roupas de marca ou gameboys.
E, no caso de Gisberta, pode-se sentir alguma complacência por quem torturou outro ser até à morte?
Que tipo de adultos irão ser, quando a idade já não lhes servir de álibi?
A solução engendrada por um partido parlamentar - imputar condenações severas a partir de uma idade mais baixa - não servirá para evitar recorrências de tragédias deste tipo.
Se fosse assim os violadores e os homicidas pensariam melhor antes de executarem os seus crimes …
A solução passa, pois, por uma sociedade diferente, que exija sentido de responsabilidade a quem decide ter filhos.
Só avançando para esse projecto com a garantia de se desejar, de facto, gerar um novo ser como corolário de uma relação amorosa perspectivada como perdurável, se evitarão verdadeiros
«monstros sociais» condenados a, mais tarde ou mais cedo, apodrecerem nas prisões…
Daí a importância da despenalização do aborto. O autor de «Freaknomics» já demonstrou, estatisticamente, como uma mudança legal nesse sentido fazia diminuir os índices de criminalidade vinte anos depois.
Parecendo difícil achar relação causa-efeito entre essas duas realidades não é difícil adivinhar passados afectivos problemáticos nessas crianças atiradas para instituições do tipo da Casa Pia ou das Oficinas de S. José. Que se traduzirão em comportamentos associais em muitos deles, quando chegam à vida adulta!
Ou muito antes disso mesmo acontecer como se viu no crime do Porto…

segunda-feira, julho 24, 2006

UMA CARTA PARA O «PÚBLICO» NÃO INSERIR NAS SUAS PÁGINAS

Serão as ideias de Miguel Portas coincidentes com as do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad?
Com uma falta de elegância, que se deve assinalar, sobretudo por se tratar de quem, enquanto director do jornal, tem responsabilidades acrescidas no respeito por uma deontologia de carácter, o senhor José Manuel Fernandes não contrariou fundamentadamente nenhuma das teses do conhecido historiador e político.
Embora não me identifique com muitas dessas teses, o que dele li no artigo sobre a actual situação no Médio Oriente tinha as características de seriedade expectável em quem possui uma formação académica significativa naquela matéria. E contribuiu para complementar o painel de opiniões, que sobre ela vêm sendo publicadas.
O que parece irritar o director do «Público» ao ponto de avançar pelo insulto soez é a contínua demonstração do erro em que insiste lavrar. Para ele e outros antigos militantes da extrema-esquerda, quando muito jovens, a maturidade atirou-os para um reposicionamento ideológico claramente oposto. Um fenómeno, que deveria merecer uma tese de doutoramento, para que pudéssemos entender o que, psicologicamente, socialmente e politicamente, possa justificar tão estranha mutação.
Mas, tal como nesse passado distante, o director do «Público», mas também a Helena Matos, o João Carlos Espada e outros paladinos das teses dos neo-conservadores norte-americanos, assumem idêntico convencimento da bondade das suas ideias presentes. Como se o mundo se continuassem a dividir entre bons e maus, só variando com os anos quem são uns e outros.
No caso da guerra no Líbano, estes comentadores não conseguem explicar como é que um país democrático, com um Governo reconhecido internacionalmente, se vê agredido pelo vizinho do Sul mediante um álibi - o dos soldados tomados como reféns - que recorda os argumentos de Hitler para invadir a Polónia ou a Checoslováquia no início da 2ª Guerra Mundial.
Mas, mesmo reconhecendo o direito de Israel para salvaguardar a vida dos seus três soldados raptados pelo Hamas e pelo Hezbollah, que legitimidade tem o governo de Olmert para, em contraponto, tirar a vida a centenas de libaneses, muitos deles mulheres e crianças, que apenas desejavam viver pacificamente no seu País há tão pouco tempo saído de uma nefasta guerra civil?
E, vindo um pouco mais atrás, e partindo do princípio que os valores democráticos são para respeitar, o que torna menos legítimo o Governo eleito do Hamas do que saiu do Knesset? Não foram ambos designados a partir de processos eleitorais considerados como irrepreensíveis pela comunidade internacional?
E, olhando para outras latitudes, poder-se-á dizer que a vida das populações iraquianas e afegãs melhorou alguma coisa com o contínuo intervencionismo norte-americano?
E encontrarão esses comentadores alguma justificação para o escândalo de Guantanamo, que nem o Supremo Tribunal norte-americano conseguiu legitimar?
Compreende-se a falta de discernimento de José Manuel Fernandes. Mas, francamente, será que o insulto será doravante a única arma argumentativa, que lhe resta’

domingo, julho 23, 2006

«A DUPLA» de RAOUL RUIZ

Tem oito anos, foi rodado no Canadá e reflecte alguns dos temas mais do agrado do chileno, que o realizou. Em «A Dupla», Anne Parillaud é, em simultâneo, duas pessoas diametralmente opostas, mas com o mesmo nome: Jessie Ford.
Uma delas é uma assassina profissional contratada para eliminar por contrato, quem os seus clientes lhe indicam.
Outra é uma mulher jovem muito vulnerável, acabada de sair de uma cura psiquiátrica subsequente a uma agressão sexual e agora recém-casada com um jovem, que a leva de lua-de-mel para a Jamaica.
A questão amiúde colocada ao longo do filme é óbvia: quem é a verdadeira Jessie? A assassina ou a noiva? E o que é a outra? Uma sua réplica onírica ou um clone?
A verdade é que, na Jamaica, ela continua a sentir-se ameaçada: o seu violador não a terá seguido até ali para continuar a agredi-la ? E porque é que a bela Paula Quinn, encontrada no hotel, parece tão íntima do seu Brian?
Para encontrar alguma resposta ela vai consultar-se com uma suposta vidente, que tudo sabe: Isabel. Que, através de um chá, lhe propicia sonhos em que se vê atropelada perante a impassibilidade de quem testemunha essa cena.
Por seu lado, Brian começa a revelar um interesse óbvio pela herança por ela recebida do seu defunto pai. Que desejaria investir em negócios rentáveis para os quais lhe não faltariam ideias…
Jessie começa a inquietar-se com sucessivas situações de perigo em que se vê, enquanto está com o marido: uma queda por uma falésia ou um afogamento no mar evitados no último instante.
Igualmente a sua vertente de assassina começa a encarar Brian como um alvo potencial: é a ele que uma tal Laura pretende ver morto, contratando para tal os serviços dela. Ora, em última instância é ela quem acaba de descobrir em Brian a verdadeira identidade do violador de Nova Iorque.
Mas a Jessie mais vulnerável não quer acreditar e insurge-se contra a sua dupla. Erradamente, claro, já que Brian e a sua amante Paula preparam-lhe o «suicídio com barbitúricos» por forma a ficarem com o campo aberto para os seus projectos de felicidade a dois.
Esse desiderato é evitado in extremis, acabando Jessie por acordar numa clínica em Seattle ao fim de vários meses. Mas, agora elucidada, quanto à personalidade de Brian procura-o em Nova Iorque aonde ele estava em jantar romântico com Paula. E atraindo-o à casa de banho é aí que o elimina ...

quinta-feira, julho 20, 2006

UMA GUERRA NO MÉDIO ORIENTE

A situação agudizada na guerra do Médio Oriente, confronta-me com algumas contradições difíceis de dissipar: por um lado reconheço as razões dos palestinianos e dos libaneses perante uma violação tão flagrante das leis internacionais, tanto mais que acompanhada de uma anti-democrática falta de reconhecimento da vitória do Hamas nas eleições recentemente ocorridas.
Mas, é também verdade a identificação mais fácil dos nossos valores com os israelitas do que com os muçulmanos. Bastará o tratamento dado pelos regimes islâmicos às mulheres para se justificar uma opção civilizacional.Porque, mesmo não o sendo inicialmente, o conflito israelo–palestiniano acaba por representar o tal choque de civilizações de que falava Huntington. E comporta os riscos de ver prejudicado o nosso bem-estar ao levar os preços de petróleo para uma espiral descontrolada.
E se ainda agora aparecem os indícios de uma recuperação económica, há sempre o risco de os ver evaporarem-se nesta depressão colectiva.
Sem não termos contribuído em nada para tal peditório, podemos sofrer na pele os efeitos nefastos de dois mandatos de George W. Bush na Casa Branca. É que se eles bastaram para desmistificar as ideias absurdas dos neo-conservadores, para quem a supremacia imperialista da América passava pela exportação de uns ideais de democracia, nada de bom acarretaram para o nosso bem-estar ou para a criação de uma confortável sensação de confiança perante o futuro.
Por tudo isso, mesmo neste cantinho à beira-mar plantado, existe uma ansiosa expectativa pela emergência de uma paz para todos honrosa ...

segunda-feira, julho 10, 2006

BECKETT POR DESCOBRIR?

Será uma falha minha, mas nunca me senti atraído pela dramaturgia de Samuel Beckett. Porque o associo a poucos actores em cena e a muitas palavras disparadas de forma quase meteórica. Apesar de sobrar grande importância para as pausas, para os silêncios.
É, porventura, uma questão de maturidade. Como sucedeu com a música clássica, ainda há uns anos ouvida com frequência, mas sem paixão e, hoje, à beira do meio século de vida me leva a militante devoção.
Porque os temas de Beckett só agora começam a preocupar-me a sério: as angústias, as inseguranças, as frustrações de quem teceu ideais de felicidade, que se realizaram em grande parte mas não na sua mais utópica totalidade. Havendo um fim irremediável a ameaçar tolher as oportunidades remanescentes para conseguir esse tal pleno.
Talvez daqui a não muito tempo eu confesse aqui o emergente fascínio pela obra mais filosófica, que meramente teatral do dramaturgo irlandês…

terça-feira, junho 27, 2006

O ENTERRO DE NATE

Nas últimas semanas temos assistido fielmente ao desenlace da série «Sete Palmos de Terra». Vemo-la como se fôssemos vizinhos, ou mesmo familiares daqueles personagens, que ilustram outros tantos estereótipos - mas bem complexos - da diversidade humana.
Os episódios desta quinta temporada são, porventura, ainda mais intensos, que os das anteriores. Como se, perante a inevitabilidade da morte de um dos protagonistas - esse Nate que, no primeiro episódio da série, regressava a casa, oriundo de Seattle (a terra do seu idolatrado Kurt Cobain), para participar do funeral do pai - todos os demais personagens refinassem os traços do seu carácter.
Uma dessas personagens, que mais nos tem interessado, é a mãe. Ruth passou pela viuvez, por diversos amores, pelo prazer, e depois pela angústia da solidão, até desembocar neste drama de não ter estado presente, quando o seu filho preferido cedia a um aneurisma.
Apesar de sempre apreciarmos o desempenho de outros dos grandes actores da série - particularmente o que faz de David, o irmão homossexual de Nate, mas também todos os demais, capazes aqui e além de grandes momentos interpretativos, este tipo de séries leva-nos sempre de encontro às personalidades mais ou menos fortes das progenitoras.
Como não lembrar a perfídia da mãe de Tony Soprano nessa ânsia de muito se fazer amada, sem sequer retribuir?
No caso de Ruth a caracterização sai menos maniqueísta: ela consegue comover com a sua ingenuidade perante os que a pretendem seduzir, irritar com essa incapacidade de encontrar um caminho bem definido para se realizar; ou odiar, quando trata o seu mais recente companheiro, George, com a crueldade de quem se mostra incapaz de aceitar os acessos de loucura dele.
Acabará por ser esse mesmo George quem , nos discursos perante o corpo, proferirá um discurso elucidativo: Nate esforçara-se por ser um homem bom dentro do seu idealismo, mas nunca deixara de ser igual a qualquer outro dos presentes: tão imperfeito quanto qualquer outro…
E é nessa aceitação das nossas próprias imperfeições que, num fenómeno de conveniente identificação, somos capazes de exorcizar muitas das nossas zangas connosco mesmos...