quarta-feira, fevereiro 14, 2018

(P) Todos os caminhos vão dar a Palmela


Neste inverno de 2018 todos os caminhos vão dar ao Vale de Barris de Palmela, porque ali convergem, em quatro fins-de-semana distintos, outras tantas companhias de teatro oriundas do Norte e Centro do País e com dramaturgias e propostas cénicas muito interessantes.
O ciclo iniciou-se com a Trigo Limpo Teatro ACERT de Tondela, que apresentou «Sentada no Escuro»  baseada numa obra de Lobo Antunes: «Para Aquela que está Sentada no Escuro à minha Espera».
Não se tratasse de uma encenação de Pompeu José e teria passado ao lado, assumida que é, há muito tempo, a reiterada antipatia pela obra, e sobretudo, pela pessoa do «invejoso». E convenhamos que ele parece incapaz de fugir aos temas da velhice e da morte, mais do que repisados nas crónicas regulares na «Visão». Mas reconheço um excelente trabalho de interpretação dos atores, particularmente de quem desempenha o papel da velha atriz, acometida de alzheimer, e que resgata das profundezas da memória a infância vivida em Faro com um pai terno e de uma mãe mais sisuda, mas igualmente assertiva. Enquanto há quem lhe deseje abreviada a vida para receber a herança e poupar nos elevados custos de a ter em casa, e não num lar, também se conhecem os desejos opostos da criada, que se sabe condenada ao desemprego tão só se verifique o inevitável desenlace.
Além da forma como o tema é explorado, apreciei, sobretudo, a funcionalidade da cenografia, que se foi alterando em função das necessidades requeridas pela evolução da história.
No último fim-de-semana estiverem em cena as três atrizes do Teatro da Didascália que criaram um espetáculo a partir da tradição oral, sobre  mulheres, sujeitas ao patriarcalismo de uma sociedade rural eivada de tabus e preconceitos . Vindas de Joane, povoação do concelho de Famalicão, as muito jovens intérpretes revelaram um impressionante domínio das respetivas vozes, ora em textos falados, ora cantados. Uma excelente proposta por uma companhia, que conhecemos pela primeira vez. O que não sucederá com as próximas duas presenças em Vale dos Barris, já que, quer a Teatro do Montemuro, que apresentará o seu espetáculo a 3 e 4 de março, quer a Pé de Vento, que ali estará em 10 e 11, já nos surpreenderam com peças imaginativas e diferentes do que comummente temos visto. Por isso mesmo lá voltaremos a comparecer, porque confiamos na certa recompensa para tal deslocação.

(S) A Sinfonia nº 2 de Rachmaninoff dirigida por Antonio Pappano nos Proms de 2013

domingo, fevereiro 11, 2018

(DL) Javier Cercas, Danilo Kiš , Didier Blonde e Victor Hugo


1. A evocação do seu tio-avô, Manuel Mena, pelo escritor Javier Cercas («O Monarca da Sombra») permite desmentir a ideia feita sobre a República espanhola comummente apresentada pelos seus detratores como um período caótico, com violência generalizada não só entre os que a defendiam e os monárquicos, mas também entre os primeiros, divididos entre comunistas, socialistas e anarquistas, incapazes de encontrarem um denominador comum na forma de construírem um futuro viável.
Em 1931, quando Alfonso XIII partiu para o exílio, criou-se um tal ambiente de esperança em todo o país, que em Ibahernando, vila estremenha da família materna do escritor, em duas eleições sucessivas, à vitória esmagadora dos monárquicos logo se seguiu a da dos republicanos, ambas na dimensão de 80% dos votantes. Cercas chama a isso uma “adesão por inércia”, muito semelhante à verificada em Portugal no 25 de abril de 1974 em que a sensação de uns quantos, sobre sentirem-se minoritários na oposição ao regime, viu-se surpreendida pela súbita maioria esmagadora capaz de se afiançar antifascista desde o berço.
Na descrição da transição desse sentimento de esperança para o de desilusão, que levou muitos a transferirem o apoio para os falangistas, que prometiam ordem e autoridade, Cercas descreve estratégias, que continuam a ser as das direitas nos dias de hoje. Como não ver na permanente afirmação de Passos Coelho em ter ganho as eleições de 2015 essa mesma recusa da direita espanhola em aceitar a derrota eleitoral de 1931? No fundo a mesma reação, que continua a ser a de Rajoy face à derrota na Catalunha em dezembro passado…
Mas também o empolamento de pequenos casos, que parecem ter uma dimensão muito exagerada em relação ao que efetivamente representam. Ou essa permanente atenção ás menores divergências entre as esquerdas, que permita serem exploradas, para que se as consiga dividir.
As direitas continuam a ler a mesma cartilha, esperançadas em que ela lhes devolva os sucessos passados. Cabe agora às esquerdas mostrarem outra inteligência e reagirem de acordo com a importância, que lhes devem merecer os objetivos a médio e longo prazo, em vez de apenas apostarem nas conquistas imediatas . Algo que Arménio Carlos ou Catarina Martins deveriam interiorizar!
2. No romance de Cercas cita-se um conto do escritor sérvio Danilo Kiš intitulado «É Glorioso Morrer pela Pátria». A história é curiosa: devido ás suas atividades revolucionárias o aristocrata Esterházy é preso e condenado à morte. Cresce-lhe então a apreensão: conseguirá manter a pose corajosa perante a forca onde será executado?
Ao visitá-lo a mãe promete-lhe humilhar-se perante o Imperador para conseguir a comutação da pena, prometendo-lhe vestir-se de branco no dia em que ele será conduzido ao patíbulo se a missão tiver sido bem sucedida.
No dia em causa Esterházy vê-a, de facto, de branco trajada, quando o levam para a praça onde será executado, e sente-se aliviado. Adivinha que, no último momento, o ato será interrompido com a leitura do sinal de clemência do soberano. Mas engana-se, porque o penduram efetivamente do laço e suspendem-no.
Não dando resposta às interrogações que levanta, Kiš dá ao leitor toda a margem para que possa especular. Será que a mãe compareceu, de facto, perante o Imperador para pedir a salvação do filho? Será que ele lhe fez crer que assim seria, mas a enganara, deixando que o veredito fatal se cumprisse? Será que essa mãe quis apenas enganar o filho permitindo-lhe encarar a execução com a ligeireza de quem dela se julgaria a salvo até ao derradeiro momento? Movê-la-ia o amor maternal, ou o orgulho da casta, que pretenderia evitar uma reação de medo que a envergonhasse?
É essa uma das grandes virtudes dos melhores textos literários: formularem interrogações sem lhes darem a devida resposta…
3. Um dos mais recentes romances publicados em França é da autoria de Didier Blonde e intitula-se «Le Figurant».  Trata-se de uma assumida homenagem aos atores e atrizes, que os filmes não dispensam, apesar de quase não falarem, limitando-se a credibilizar as histórias com as presenças anónimas perante as câmaras dos realizadores.
O narrador participara na rodagem de «Beijos Roubados» de François Truffaut e aí contracenara com uma rapariga, cujo nome não chegara a saber, mas com quem vivera intensa aventura platónica durante a brevidade de uma só noite.
Quarenta anos depois ele, que nunca a esqueceu, vai procura-la, o que equivale a revisitar muitos outros filmes da Nouvelle Vague em que ela também aparecera fugazmente. Partindo para essa aventura imbuído de um tardio romantismo confronta-se com um banho de realidade: a vida fora do mundo dos filmes nada tem a ver com o sentimentalismo de Antoine Doinel. Perseguindo sombras depara-se com a inevitabilidade de um tempo, que passou e já não é passível de resgatar. Restar-lhe-á olhar para as fotografias desse passado e saber-se dele testemunha.
4. Ao escrever «Os Miseráveis», Victor Hugo ambicionou criar uma obra capaz de mudar a realidade do seu tempo contra a qual combateu o bastante para se ter de se exilar. Ao editor italiano da sua obra escreveu uma carta em que lhe confidenciou essa expetativa: “Em todos os lugares onde o homem ignora e desespera, em que as mulheres vendem o corpo para ganhar o seu pão ou em que as crianças sofrem por falta de um livro que as ensine, e de um lar que as aqueça, «Os Miseráveis» batem à porta dizendo: ‘Abram, que eu venho para vos ajudar!’”
Essa seria a mais nobre função da Literatura: mais do que distrair ou cultivar, deveria estimular a transformação progressista da realidade!

sábado, fevereiro 10, 2018

(I) Os cínicos, a sinceridade e o conceito de propriedade


Quem é que é cínico: o professor de virtude ou o professor de cinismo? Se o cinismo é, em todas as circunstâncias, agir segundo o seu interesse, quer isso dizer que se pode beneficiar sendo-se sincero? Equivale então o cinismo à sinceridade?
E se o cinismo começa a revelar-se no preciso momento em que alguém age de forma totalmente oposta áquilo que aconselha aos outros? Seria o cinismo esse desvio entre o que se diz e o que se pratica?
Existe uma diferença significativa entre o conceito atual de cinismo e o que, na Grécia Antiga, era professado por Diógenes de Sínope, aqui representado ao lado num quadro de Jean-Léon Gêrome, datado de 1860. Nele surge o filósofo acompanhado dos cães, que dizia admirar por lhe inspirarem a permanente vocação para provocar, entrando em rutura com os valores tradicionais. Assim, a seu exemplo, não se coibia de se comportar na praça pública tal qual os outros o faziam no recato do lar. Por exemplo masturbar-se à vista de todos e para seu indignado repúdio.
Para essa escola filosófica o cinismo significava assumir o orgulho relativamente àquilo de que se era repreendido. E, em vez de pedir esmolas aos vizinhos, Diógenes exigia-lhas como se constituísse um direito ver-se por eles financiado.
No quadro também se vê a célebre lanterna, que Diógenes levava consigo para todo o lado. Para quê?, perguntaram-lhe um dia. Disse que para procurar um homem, algo que considerava assaz raro, porque só se deparava com miseráveis e pobres de espírito.
Um dia também lhe perguntaram para que servia a Filosofia, ao que terá respondido que para ser rico sem nada ter.  Considerando-se «cidadão do mundo», não reconhecia a propriedade da terra a ninguém, abolindo qualquer fronteira entre o público e o privado.
Mas a mais célebre história sobre este assumido sem abrigo aconteceu quando Alexandre, o Grande, o veio procurar para lhe manifestar genuína admiração, dispondo-se a dar-lhe o que ele pretendesse. Agastado com a presença do soberano, Diógenes ordenou-lhe que desaparecesse da vista, porque estava a tapar o sol. Os cínicos seriam, pois, os que diziam o que pensavam, sem se precaverem das consequências das suas palavras. Não demonstravam o calculismo hoje associado à designação. Constituíam os representantes de uma certa forma de utopia em que tudo era de todos numa antecipação de quem, séculos depois, atribuiria à propriedade a condição de produto de um roubo.

quinta-feira, fevereiro 08, 2018

(DIM) «A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça» de Tim Burton (1999)


O projeto para a produção de «A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça» começa em 1993, quando Kevin Yagher, o diretor de caracterização da série televisiva «Tales from the Crypt», considerou a possibilidade de, ele próprio, dirigir a versão cinematográfica de «Sleepy Hollow», um conto que Washington Irving escrevera em 1820.
A ambição não era muita e a ideia era concretizá-la num filme de baixo orçamento com profusão de cenas sangrentas de cinco em cinco minutos para agrado das plateias adolescentes dos cinemas norte-americanos na altura em que essa classe etária tinha empurrado os pais e os avós para os sofás caseiros, privando a indústria de Hollywood do tipo de consumidores mais exigentes, que justificavam a criação de filmes com outro tipo de preocupações.
Nos anos seguintes Yagher contou com a ajuda de Andrew Kevin Walker para transformar o conto, que por si mesmo não continha matéria suficiente para preencher uma longa-metragem, numa história que fizesse sentido e contivesse personagens credíveis. Ichabod Crane deixava de ser um professor do Connecticut para se transformar num detetive malvisto em Nova Iorque, por querer impor métodos de investigação científicos, que os colegas não estavam dispostos a adotar.
Apresentado à Paramount como projeto passível de ser financiado, «Sleepy Hollow» logo saiu do controle dos proponentes, que continuaram ligados a ele apenas como argumentistas e como responsáveis da caracterização dos atores. O estúdio quis transformá-lo numa grande produção, associando-se à American Zoetrope de Francis Ford Coppola.
Em junho de 1998 Tim Burton, que tinha saído da turbulenta produção de «Superman Lives», foi contratado para dirigir o filme, cujo tema vinha ao encontro do seu consolidado gosto por ambientes sombrios, desde cedo incrustado pelos filmes da Hammer Films Productions e de Roger Corman nos anos 60. 
Embora não creditado no genérico foi contratado Tom Stoppard para aprimorar o argumento dando-lhe a consistência, que Burton ainda nele não encontrava.
Quando se passou à escolha dos atores, os estúdios pretendiam que Burton acolhesse Brad PittLiam Neeson ou Daniel Day-Lewis para o papel de Ichabod Crane, mas ele impôs Johnny Depp com quem já trabalhara em «Eduardo Mãos de Tesoura» e «Ed Wood». E foi uma excelente escolha, porque o ator aprofundou o lado delicado do personagem, que se revela demasiado frágil face à força revelada por Katrina, que Christina Ricci interpreta.
Inicialmente deveria ser Winona Ryder a contracenar com Depp, mas o relacionamento entre ambos já estava complicado e ela escusou-se. Foi uma daquelas situações em que a alternativa se revelou melhor do que a original, porque a atriz que conhecêramos na «Família Adams» crescera, mas mantivera um rosto expressivo, cujas reações dão ao desempenho o carácter pretendido.
No plano estético, o filme é tido como um dos melhores exemplos da cultura gótica com contínuas referências cinéfilas. Numa das mais evidentes – a cena em que o pai de Ichabod mata a mulher enfiando-a num instrumento de tortura – é a «Máscara do Diabo» de Mario Bava, que surge explicitamente reproduzida.
Há também a exploração do tema da identidade da América, então ainda uma jovem nação, dividida entre a memória presente do passado sangrento, pejado de superstições, e um futuro que se apresenta como radioso. Ichabod Crane representa o progresso, negando as suas origens ao recalcar as recordações infantis (sobretudo a da amada mãe, assassinada por feitiçaria), mas trazendo-as de volta por influência da sugestiva Árvore dos Mortos, símbolo dos demónios do passado capazes de tanto influenciarem o presente.
Logo no genérico temos de Sleeepy Hollow a imagem soturna de um ambiente marcado pelo obscurantismo, que será totalmente contraditória com a do final, quando Ichabod e Katrina avançam pelas ensolaradas ruas de Nova Iorque, bem representativas do progresso então em acelerada afirmação. Embora não negando a parte de irracional, que reconhecera na realidade, Ichabod avança confiante no triunfo da racionalidade. E essa é a sugestão que o filme assume quando se conclui.

terça-feira, fevereiro 06, 2018

(DIM) «Onde não existem putas» de Ovidie (2017)


A primeira vez  que Ovidie ouviu falar do caso de Eva-Marree Smith Kullander trabalhava no jornal «Metro». Embora se tratasse de notícia de pé de página, logo a obcecou por se passar num país, a Suécia, conhecido pelo seu modelo social, pelos baixos índices de criminalidade, pela suposta inexistência de sexismo, mas em que afinal as coisas não se revelam tão «perfeitas» quanto parecem à primeira vista. Pouco a pouco a realizadora do documentário «Là, où les putains n’existent pas» começou a detetar a estigmatização das mulheres suecas quanto às suas escolhas sexuais, vendo-se em risco de serem privadas dos filhos.
A história, que verteu para documentário, simboliza o falhanço daquele modelo social, que maquilha uma sombria realidade social. Culminando um pesadelo iniciado três anos antes, quando abandonara o companheiro por ser vítima de contínuas manifestações de violência doméstica, Eva-Marree, então com 27 anos, foi por ele assassinada  nas instalações dos serviços de Segurança Social, onde procurava esclarecer a sua situação, pois tinham-na denunciado como trabalhando como «escort girl». Tanto bastara para esses serviços terem-lhe tirado os filhos de 5 e 4 anos, e os confiarem a esse seu agressor. Mesmo estando oficialmente reconhecida a violência conjugal.
No dia em que fora morta, Eva-Marree conseguira, graças ao apoio do seu sindicato, que lhe fosse reconhecido o direito de visitar os filhos, muito embora o verdadeiro combate fosse o de recuperá-los para junto de si.
 As leis sobre a prostituição visam proteger as mulheres da violência mas, na realidade, servem de instrumento a um controle moralista: dado que consideram incompatível a atividade de prostituta com a de mãe, retiram-lhes os filhos. Daí a efetiva cumplicidade do Estado sueco no assassinato de Eva-Marree: a caça às «bruxas» movida contra as prostitutas, constituiu a implícita ordem para matar a quem a esfaqueou.
Pode-se falar de terror: muitas mulheres, mesmo as que não são trabalhadoras do sexo, recusaram testemunhar para o filme de Ovidie com receio de se verem elas próprias levadas pela polícia e espoliadas dos filhos. E, quando a realizadora quis obter testemunhos das autoridades não os conseguiu como se uma mafiosa omertà fizesse vingar o silêncio absoluto. Quando se tratou de filmar o exterior do edifício onde Eva-Marree foi assassinada, foram muitas as pessoas, que vieram instar a equipa de filmagens a sair dali. Ovidie, que julgava ter deparado com as dificuldades mais complicadas, quando rodou o seu filme precedente, «Pornocratie», sobre as multinacionais do sexo, voltava a deparar com as mesmas dificuldades no país escandinavo.
Quando terminou a rodagem, os pais da assassinada continuavam sem saber o paradeiro dos netos. Até ver o Estado sueco continua impune na forma como abusa do poder, continuando a reconhecer ao assassino, mesmo que preso, a autoridade parental.
O filme de Ovidie é um requisitório contra a injustiça revoltante a que uma mulher foi vítima devido à perspetiva puritana e repressiva tomada pela Suécia e que outros países europeus se sentem tentados a imitar. 


segunda-feira, fevereiro 05, 2018

(S) Christophe Dal Sasso: um compositor entre a música clássica e o jazz

As partes do Todo (XV) - 5 de fevereiro de 2018: as origens do sistema solar

Há 13,7 mil milhões de anos o Big Bang dava início ao nosso Universo. Trezentos milhões de anos mais tarde podiam-se detetar as primeiras estrelas, a seguir as primeiras galáxias. A nossa Via Láctea só surgiria há 12 mil milhões de anos e o nosso Sol há 4,6 mil milhões de anos.  Relativamente à realidade cósmica, que nos rodeia, somos uma espécie de «recém-chegados».
Durante muito tempo pensou-se que o Sol resultara da supernova Coatlicue, mas uma teoria recente põe em causa tal hipótese. Voltam-se a questionar as origens do sistema solar, sabendo-se que a sua formação, embora incomum relativamente a outras galáxias, não será caso único numa génese, que se manifestou através de muitas possibilidades alternativas.
A presença do alumínio 26 no nosso sistema solar é um dos maiores mistérios a esclarecer, porque não se sabe como pode ter sintetizado nas condições cósmicas conhecidas. Mesmo os meteoritos caídos na Terra, autênticos fósseis da época da formação do sistema solar, trazem consigo os vestígios desse elemento químico. Hoje há quem defenda a tese da substituição do cenário clássico pela chegada de uma estrela gigante e massiva à nebulosa solar, conferindo-lhe essa e outras características ainda por clarificar.

(S) Sophie Auster a cantar «Leave Me Strange»

(DL) «4321»: um grande romance, um romance grande

Aos setenta anos Paul Auster é reconhecidamente um dos grandes escritores norte-americanos dos nossos dias, embora também se tenha aventurado no cinema como argumentista e realizador. Habitando em Park Slope, no bairro de Brooklyn, continua a construir uma obra assombrada pela literatura, trabalhada pelas vertigens da identidade, da roleta dos acasos e do destino, e fazendo de Nova Iorque o cenário privilegiado da sua ficção. Como sucede no mais recente romance - «4321» - que é um audacioso desafio romanesco nas suas mais de mil páginas, densas e rápidas como a História, e passadas entre o assassinato de Kennedy e a queda de Nixon numa América em que a questão racial e a guerra do Vietname dividem o país. O livro não enjeita as questões políticas, porque Auster defende que o próprio ato de escrever é, em si mesmo, um ato político.
«4321» retoma os temas, que marcaram a obra de Paul Auster desde a sua Trilogia publicada entre 1985 e 1987: a importância das coincidências, as incertezas da identidade e o papel da literatura nas nossas vidas. Como de costume, o personagem principal ou o narrador é um escritor, ou sonha sê-lo, o que facilita o ensejo de numerosas referências a autores como Melville, Beckett, Dostoievski numa subtil intertextualidade.
É na construção, que esse romance mais surpreende, porque contem quatro relatos sobre as diferentes vidas de um narrador chamado Archie Ferguson. Cada um desses Ferguson vive num subúrbio diferente de Nova Iorque, mas conjugam-se na paixão pela concupiscente Amy Schneiderman. E acrescentam-se muitas outras personagens, que se vão encontrando de uma para outra das quatro histórias. Porque, como diz o autor, “quando estamos sós, não o estamos: habitam-nos os outros, as suas vozes, as suas recordações”.
È romance cuja espantosa construção adota uma ideia que parece ter divertido Diderot em «Jacques, o Fatalista»: é a questão de imaginar o que teria acontecido se…? Nós mesmos teríamos vivido da mesma maneira se, em determinada altura, tivéssemos virado para  a esquerda em vez de o termos feito para a direita? Se decidimos seguir esta rapariga ou este rapaz, em vez de regressarmos a casa? Em suma trata-se de compreender como é que, ao longo da vida, escolhemos o rumo a prosseguir? Chama-se a esse processo “a lógica das possibilidades narrativas”. São essas possibilidades que estão na origem das histórias criadas pelos escritores, lidas com prazer e interesse, porque “não se pode imaginar a vida sem histórias imaginárias”.

sábado, fevereiro 03, 2018

(S) Polir o escuro para que ele ficasse brilhante, iluminado

Leonard Cohen intentava alcançar as profundezas da alma, seja lá o que esta for. Por isso explorou com tanta lucidez quanto lhe foi possível alcançar o que era a parte de sombra e de luz em cada um de nós e a começar em si próprio.
Profundamente atormentado desde a infância criou uma obra, que oscila entre o estado de graça e a queda nos abismos, entre o ódio e o amor, sondando cada emoção como se contivesse a essência de uma verdade absoluta.
«Está tudo dito nas minhas canções», costumava dizer o escritor, romancista e poeta, transformado em cantor porque ambicionou dar voz aos seus textos. Nas suas palavras e melodias os anjos podem raspar as lâminas de barbear, as canções infantis comportam uma impiedosa violência e a alva pureza de uma avalanche ameaça soterrar uma alma pesada. Frequentemente com vozes femininas a envolverem-lhe a gravidade da voz.
Se o objetivo era alcançar uma qualquer forma de iluminação isso implicava a prévia passagem pelo negrume das profundezas. Para perfazer esse caminho toda a obra de Leonard Cohen corresponde a uma gigantesca Arte de Amar. Os afetos, germinados da mesma raiz, confundem-se incessantemente.
Ao escutarmos esses textos, que nalguns casos foram sendo burilados durante anos, acompanhados pelos arpejos da guitarra ou da música eletrónica, compreendemos que Cohen transcendeu todos os medos para alcançar uma radiosa sageza. Nos últimos anos não fizera desaparecer esse lado sombrio da existência mas aligeirara-o, como se, à força de polir o escuro, lhe tivesse conferido as propriedades da luz.

(I)O trans-humanismo: uma moda que veio para ficar?

Mudar de época é mudar de problemas, graças a invenções inéditas. Hoje uma questão pertinente é saber se a Humanidade continuará a mesma ao determos os meios de a alterar, melhorar, reparar. Já existem pessoas munidas de mãos biónicas capazes de as virarem 360º, possuindo pois faculdades acrescidas em relação às originais. O «homem reparado» parece ver aumentadas as suas capacidades e essa é a base do que se chama o trans-humanismo.
Durante séculos chamava-se o médico para que curasse o mal de que se estava acometido. Agora o desafio é outro, supostamente qualificado de «melhoramento» do ser humano. Na Universidade de Rochester fazem-se experiências com as células senescentes de ratos de laboratório, a quem se acrescenta esperança de vida de 30%, inovação que, a ser transferida para os seres humanos, poderá fazê-los viver até aos 130 anos.
O grande projeto trans-humanista consiste em lutar contra o envelhecimento, prolongando a existência humana por mais umas décadas. Mas Fabrice Sabre, um dos detentores das tais mãos inovadoras, pergunta se, com esse novo membro, continua a ser ele mesmo ou se passa a ser um outro, aparentemente igual no aspeto geral, mas profundamente diferente no seu âmago, porque acrescentado dessa parte, que não chega a sentir como verdadeiramente sua.
Não quer dizer que se seja mais feliz por se viver mais. No fundo deveríamos ter em conta o que os Gregos antigos já sabiam, que era a futilidade de se desejar algo: se se ansiava por saúde era por se ser doente, se se aspirava à riqueza era por se ser pobre. O melhor seria, pois, nada desejar para não se consciencializarem as razões de não se ser feliz. No entanto, a engenharia genética já permite que se detetem várias doenças no feto, ainda no início da gestação, de forma a aferir se ela deverá ou não ser levada até ao seu desiderato. Hoje 87% das mulheres em quem se deteta um feto com trissomia opta por abortar, mesmo confessando-se católica, judia ou muçulmana.
Alguns dos mais entusiastas trans-humanistas já falam do advento de um Homem-Deus, que nada tem a ver com a sacralização do ser humano, que alguns filósofos defendiam como sendo o que se imbuiria de valores irrepreensíveis. Procuram o aumento das capacidades física e intelectuais, tendo como objetivo último a imortalidade. Os mais utópicos veem nesse futuro a possibilidade de, não só contrariar as desigualdades sociais, mas também as suscitadas pela Natureza. Ainda assim alguns alertam para os perigos morais de se pretender alcançar tal meta.

(S) Marco Bealey e L'Arpeggiata a interpretarem «La Carpinese»


sexta-feira, fevereiro 02, 2018

(DL) Uma alma incandescente

Emily Dickinson pertence a uma geração de escritores (Poe, Thoreau, Emerson, Hawthorne, Melville ou Whitman), que marcou uma inflexão na literatura americana. Se se tornou menos conhecida que os demais foi por ter optado por uma vida de reclusão junto da família em Amherst (Massachusetts), só tendo publicado alguns poemas em revistas e antologias enquanto viveu. A primeira recolha dos seus textos só aconteceu em 1890 e a integralidade da obra só foi conhecida em 1955 num volume com 1755 poemas escritos entre 1850 e 1886.
Apesar desse recolhimento, que nada tinha de místico, Emily Dickinson alimentou uma vasta epistolografia em que testemunhou a confessada paixão por Shakespeare, Elizabeth Barrett Browning, as irmãs Brönte e, sobretudo, pela Bíblia de que preferia o Apocalipse. Essa filiação enquanto leitora, exprimiu-se na poesia iluminada como se a incandescência correspondesse à revelação da vida a si mesma. A dimensão religiosa da obra afirma-se num «cântico das criaturas», num hino do ínfimo seja ele feito de pétalas de flores, de borboletas, de abelhas.
Os hinos à luz estival são impressionantes ao apresentarem a realidade como algo mais do que a emanação da plenitude divina para se revelar num teatro de sombras, numa fantasmagoria. A perceção confronta-se com um cérebro tenebroso, labiríntico.
A paisagem familiar está permanentemente nos poemas, revelando-se espaço povoado de ausência, um abismo sem fundo, que desafia a impossível circunferência - ora fronteira, ora porta de acesso para um outro mundo - que Emily Dickinson pretende traçar com as palavras. É uma paisagem, que não consegue ser um centro ideal para a criatura celebrar as obras divinas. Na aparência, ora infantil, ora cerimoniosa, os poemas de Emily mostram o mundo à margem de Deus e dos homens, num tempo que só a ele pertence.

(S) O Concerto para Piano e Orquestra nº 5 com Dino Ciani como solista e um jovem Claudio Abbado a dirigir

(DIM) A Alegoria da Caverna em «Apocalipse Now»

Há muitos filhos, que escolhem o que farão no futuro em função do que os pais desejam para eles. Não tendo sido o meu caso, foi o de Vittorio Storaro que reconhece ter cumprido o sonho do pai, projecionista de cinema frustrado por só poder exibir os filmes sem conseguir construi-los, imprimindo-lhes a sua marca. E ainda bem que o fez, porque alguns dos títulos, que mais grata recordação me deixaram, quando os vi projetados na escuridão iluminada das salas de cinema, têm a sua assinatura. A começar por «A Estratégia da Aranha», o Bertolucci de que mais gostei, apesar de ser um dos primeiros títulos da sua filmografia, prosseguindo no esplendor de «Apocalipse Now» e culminando, mais recentemente, no «Café Society» de Woody Allen.
Na entrevista em que ele conta a razão para ter enveredado por essa opção profissional também revela algo que me escapara quando vira o filme de Coppola com Marlon Brando no papel de Kurtz: a forma como os três combinaram que fosse filmada a cena culminante do encontro de Willard com o enlouquecido militar nas selva da Indochina tinha por referência concreta a alegoria da Caverna. Este tornava-se assim no personagem, que vinha da Luz e penetrava naquele mundo sombrio onde o interlocutor estabelecera o contraponto niilista à violência agressora dos que para ali haviam imposto a lógica dos bombardeamentos com napalm. E, se não acrescenta nada de substancial à apreciação global do filme, não deixa de ser pormenor interessante, que só o enriquece.

(S) A Sinfonia nº 4 de Valentin Silvestrov dirigida por Jukka-Pekka Saraste

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

(DIM) «Eduardo Mãos de Tesoura» de Tim Burton - documentos de apoio a uma sessão na Associação Gandaia (1)

Primeiro dos oito filmes que Tim Burton rodou com o ator Johnny Depp - que viria a tornar-se num dos seus melhores amigos -, «Eduardo Mãos de Tesoura» é um conto de fadas moderno em tons sombrios e fantasiosos. Espécie de fábula moderna, replica antigas histórias de terror bem conhecidas como o foram «Frankenstein», «A Bela e o Monstro» ou «O Fantasma da Ópera», dando-lhes aparência mais sedutora  com a ajuda da música de Danny Elfman, que tanto contribui para mergulhar os espetadores numa ambiência encantatória. Nesse sentido, por repetir-lhes as intrigas, «Eduardo Mãos de Tesoura» dá razão a Wim Wenders, quando defende já terem sido contadas todas as histórias, só havendo agora que as replicar tão originalmente quanto possível. A exemplo das citadas temos um monstro dotado das mais elevadas qualidades morais, mas objeto da incompreensão e do preconceito dos que os obrigarão a manter-se numa tenaz postura antissocial através da reclusão.
Recordando a infância em Burbank, Tim Burton satiriza as pessoas, que tudo fazem para disfarçar os defeitos e esquisitices, apresentando aos vizinhos e aos conhecidos uma imagem idílica das suas vidas, suscetível de lhes causar inveja. Trata-se de gente tão obcecada por ser socialmente aceite, que tudo faz para se enquadrar nos padrões tidos como aceitáveis para a integração no grupo. Daí caírem frequentemente no ridículo, sobretudo por alimentarem comportamentos contraditórios em relação ao que desconhecem, ao que lhes é novo: ora sentem-se seduzidas, ora podem transformar-se nos seus mais pérfidos algozes.
Curiosamente o bairro onde grande parte do filme foi rodado não foi montado em estúdio, porque existia na realidade nos arredores de Tampa. Uma das bem sucedidas opções de Burton foi pintar-lhe as casas, esvaziá-las dos seus ocupantes que se transferirem para hotéis durante a rodagem e ocupando-as com as equipas de produção e de realização, bem como com os atores. Nestes, os estúdios sucessivamente envolvidos no financiamento, começaram por sugerir Tom Cruise, Robert Downey Jr. e até Michael Jackson como protagonistas, mas o realizador impôs-se-lhes e contratou Depp, que andava a fazer séries para adolescentes na televisão.
Thomas Bourguignon, crítico de cinema do «Positif», olhou para o filme como tratando-se de um conto de fadas moderno em que o herói sai do isolamento para cumprir um percurso iniciático tendente a gerar-lhe a metamorfose redentora (como se fosse crisálida obrigada a tornar-se em borboleta). Peg faz o papel de uma fada boa, decidida a enquadrar Edward no mundo dos homens com a varinha mágica  transmutada de um lápis de maquilhagem.
Kim, por seu lado, é a bela princesa a conquistar, enquanto as vizinhas de Peg são as feiticeiras más de cujas reuniões telefónicas resulta uma ameaçadora tela de malefícios.
No entanto, e contrariamente ao que costuma acontecer nos contos de fadas clássicos, Edward não consegue completar a metamorfose. Se a integração começa por esboçar-se no talento para esculpir sebes e árvores, logo complementado para o seu papel de cabeleireiro da moda, acaba por, depois de rejeitado, reciclar-se como artista do gelo, cuja pureza está inevitavelmente associada à imobilidade.
Ele falha, igualmente a iniciação sexual, conformando-se em criar, em vez de procriar: se não fecunda os corpos, procura ser melhor sucedido com os espíritos, ofertando-lhes a beleza e a pureza, com que se possam criar um mundo novo. A sua função deixará de ser a de viver entre os humanos afastando-se como alternativa para descobrir-se, para ser artista.
Segundo Antoine de Baecque, a angústia urbana moderna é vista pelo ângulo inédito do conto de fadas e dos camponeses do século XVII, mesmo que na aparência de subúrbios norte-americanos. Os que tentam ajustar Edward à sua norma, acabam por ser-lhe intolerantes ao consciencializarem o seu fracasso.