domingo, maio 10, 2020

(G) Pierre Soulages, o artista centenário

Há um episódio na infância de Pierre Soulages, que explica muito do que ele viria a ser como artista: dotado de tintas e papel para se entreter, encontraram-no com uma folha preenchida de faixas pretas e perguntaram-lhe o que representava. “A neve”, respondeu. E, de facto, na sua perspetiva, só o preto poderia realçar a cor branca remanescente e associá-la à ideia da neve.
Apesar de nascido - há cem anos! - numa família operária, Pierre teve a sorte de contar com uma mãe atenta aos dotes artísticos apesar de enviuvar muito cedo, quando o filho apenas contava nove anos. Seria ela a principal impulsionadora da ideia dele vir a dedicar-se às belas artes.
Havia também o pormenor de conviver com os vizinhos, artesãos de vários mesteres, que lhe deram a noção da sua diferença em relação ao artista que viria a ser: enquanto eles sabiam indubitavelmente o que pretendiam fazer e como o alcançar, ele sentir-se-ia futuramente perante o dilema de, amiúde no atelier, face à tela, nem saber uma coisa nem outra.
A drôle de guerre desmobilizou-o rapidamente, quando a derrota se consumou, direcionando-o para Montpellier, onde o esperava o cargo de professor de uma escola local. À chegada teve o choque de ali encontrar Pétain e Franco numa cimeira, que colidia com o seu profundo antifascismo e antifranquismo. Estaria numa cidade que pudesse ser seu espaço de sedentarização nos anos seguintes? A visita ao Museu Fabre demonstrou-lhe que sim, sobretudo por aí ter conhecido Colette, a quem nunca mais largou nos setenta e nove anos decorridos desde então.
Compatibilizou doravante o trabalho docente com o de artista e, em 1948, conseguiu integrar uma exposição de arte abstrata na Alemanha Ocidental, que lhe valeu a atenção de um galerista norte-americano, Sam Kootz, decidido a dele organizar uma exposição anual em Nova Iorque até ao dia de 1966 em que fechou o negócio. Nessa altura já muitos museus e coleções particulares do outro lado do Atlântico possuíam obras do artista então conhecido pelos brous de noix em que símbolos misteriosos suscitavam um contraste do preto com várias cores.
No ciclo seguinte, que ocorreu a partir de 1968, criou obras de grande formato, quase todas a explorarem variações do preto e do branco. Mas a grande revelação aconteceria num dia (ou noite?) de janeiro de 1979, quando apercebeu-se de estar a pintar a luz refletida no preto.  Seria a fase do outrenoir em que recorreu a misturas de tinta preta com óleo e resina, trabalhadas com espátula, pincéis ou trinchas, para melhor acentuarem esses reflexos da luz na superfície da tela e variando consoante o ponto de observação do espectador.
Imensamente admirado, Soulages é conhecido por outra característica curiosa: rejeita a perfeição no seu trabalho, não sendo difícil detetar manchas ou outras «imperfeições» intencionais na obra terminada. Um padre, seu amigo, arrisca-se a comentar ser essa a forma dele acentuar a grandeza humana, ciente de não querer igualar-se à suposta perfeição divina. E, a exemplo de outros grandes artistas para tal convocados, também deixou a sua inimitável marca nos vitrais de uma igreja próxima de Rodez - onde fica atualmente o grande museu dedicado à sua obra - que, uma vez mais, versaram a preocupação da luz irromper da escuridão e exprimir-se de formas tão diversas e inesperadas.

Sem comentários: