domingo, maio 10, 2020

(DIM) Omar Sharif - quando os árabes não eram apenas vilões


Há algo de paradoxal no facto de Omar Sharif ter conhecido dois momentos de sorte muito peculiares, quando se lhe conhece o ulterior reverso de ter perdido fortunas nas mesas dos casinos. Mas, assim foi, quando David Lean ficou desagradado com o facto de não sentir verosimilhança no ator francês contratado para o desempenho de Sherif Ali ibn el Kharish em Lawrence da Arábia e exigiu que lhe arranjassem um ator árabe fluente em inglês. Ora Maechel Chalhoub, que já era o mais conhecido galã do cinema egípcio sob o pseudónimo de Omar Sharif, estava mesmo talhado para o papel, porque frequentara o Victoria College de Alexandria, falando o inglês - e também o francês - quase tão bem quanto a língua materna.
Lean só lhe acrescentou um pormenor, que considerava essencial: o bigode. Ciente da sua importância enquanto imagem de marca, quase nunca ele se deixou ver no cinema ou nas páginas das revistas sem tão identitário acrescento ao rosto.
O outro momento de sorte de Sharif é o neto  - e homónimo já que lhe copia o nome ao qual lhe adicionaram o diferenciador Júnior - quem o constata na entrevista para um documentário dedicado ao avô: aparecesse hoje em Hollywood e caber-lhe-iam papéis de terrorista ou de outras personagens maléficas, concebidas para a catarse dos instintos maniqueístas dos espectadores. Ao invés, aparecendo no início dos anos sessenta, quando árabes e israelitas ainda mantinham latente uma guerra, que viria a exacerbar-se a partir de 1967, seria escolhido para desempenhos românticos e até assaz singulares como os de oficial alemão em A Noite dos Generais ou de revolucionário latino-americano no Che! tal qual o concebeu Richard Fleischer. Não deixava, porém, de ser o «estrangeiro» de serviço, quando os estúdios de um precisavam.
O êxito revelar-se-ia fulgurante, mas o declínio prolongar-se-ia desde os anos setenta até à morte no Cairo em 10 de julho de 1975. Os últimos anos, quando o alzheimer tomou-lhe conta da mente, tão exercitada no bridge, foram vividos na terra que o vira nascer oitenta e três anos antes, no seio de uma família de comerciantes cristãos bem relacionada com o rei Faruk.
Alexandria, a cidade em que nasceu, era uma das mais cosmopolitas da bacia mediterrânica. Várias nacionalidades e credos religiosos partilhavam-lhe as ruas e avenidas numa tolerância, que não pressagiava o fanatismo atual. Três meses antes de Omar também aí nascera um dos grandes intelectuais do século XX: Umberto Eco.
A apetência para o teatro depressa se revelaria no jovem Maechel, que mostrou qualidades memoráveis no desempenho do doente imaginário de Molière, ainda no colégio britânico. Daí o salto para o cinema, que tinha no Egito de então um notável desenvolvimento com a produção anual de dezenas de filmes depressa distribuídos por todo o mundo árabe.
O já crismado Omar tinha apenas vinte e dois anos, quando o mestre Youssef Chahine - que chegou a competir com o nosso Manoel de Oliveira como realizador de mais provecta idade em atividade! - pô-lo a contracenar com a grande atriz de então, a bela Faten Hamama, que mobilizava multidões para verem os seus filmes. Siraa Fil-Wadi cumpriu a expetativa dos produtores num êxito comercial, mas também fez os protagonistas juntarem os trapinhos. Só que, antes de formalizar a ligação no incontornável casamento, Omar teve de converter-se ao islamismo, porque a tolerância de então não chegava ao ponto da nação árabe aceitar que um cristão se metesse entre lençóis com a sua mais representativa motivadora de inconfessáveis fantasmas.
Nos oito anos seguintes o casal partilhou os cartazes dos cinemas árabes em diversos títulos até ao tal momento decisivo da escolha dele para o filme de David Lean.
Se lhe estava destinada uma carreira internacional, o casamento depressa claudicava: sempre ausente em filmagens, Faten Hamama fartou-se de esperá-lo e mandou-o às malvas.
Singularmente, desde os 34 anos, nunca mais Omar teve uma relação fixa nem uma casa aonde morar. Vivendo sempre em hotéis, os  haveres resumiam-se às duas malas de viagem de que se fazia acompanhar por todo o lado.
Se ainda protagonizaria filmes inolvidáveis nessa década de 60 dos quais se destacam o multioscarizado Doutor Jivago e o polémico Funny Girl - que exasperaria os árabes então atiçados pela derrota na Guerra dos Seis Dias (onde se poderia aceitar os amores dele com uma judia?) - os anos 70 seriam os do surgimento de um outro tipo de atores masculinos (Paul Newman, Robert Redford, Jack Nicholson), que o tornavam obsoleto.
Instalado no Royal Hotel de Deauville, na Normandia francesa, para não ficar muito distante do casino aí existente, passou a viver o jogo com a obsessão dos viciados. Mesmo nas noites em que acumulava fortunas aí permanecia até elas se evaporarem. Daí ver-se obrigado a aceitar papéis secundários em filmes de qualidade mais do que duvidosa, cujos produtores viam na sua presença a forma de os credibilizarem junto do público. Ainda assim, em 2003, François Dupeyron deu-lhe a possibilidade de ser o protagonista de Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran, um belíssimo texto de Eric Emmanuel Schmitt, levado repetidamente à cena por Miguel Seabra no Teatro Meridional e que só quem o não viu desconhece o quanto terá perdido.
Com os bolsos vazios, Omar Sharif viveu os últimos anos às expensas do filho Tarek assistindo aos acontecimentos de 2011 na Praça Tahir com a expetativa de ver o seu país livrar-se da ditadura de Mubarak e animando-se com o fulgor revolucionário dos jovens. Porém, quando essa Revolução resultou na tomada do poder pelos Irmãos Muçulmanos ficou dececionado, embora esses acontecimentos coincidissem com a progressiva perda de memória. E, porque escusou-se a ingerir medicamentos ou sujeitar-se a terapias capazes de atenuarem a evolução da doença o desenlace consumar-se-ia com rapidez. Mas, para a História do Cinema, ele já era personalidade há muito catalogada num passado distante.

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