domingo, maio 03, 2020

(DIM) «A Sombra do Mal» de Michael Curtiz (1950)


Em 1944 Howard Hawks adaptou ao cinema o romance «Ter e não ter» de Ernest Hemingway, que se tornou numa obra inesquecível por ser o filme em que Lauren Bacall demonstrou a Humphrey Bogart, que sabia assobiar, além de outras coisas. Convenhamos, porém, que o Harry Morgan tal qual Bogey o reproduziu pouco tinha a ver com o do protagonista do romance original. Não se estranha que, por isso,  a Warner tenha incumbido Michael Curtiz de levar por diante uma outra versão, politicamente mais consistente até porque interpretada por John Garfield  no ano dos seus problemas com a Comissão das Atividades Antiamericanas.
Através de uma família, que se vê condenada a viver na pobreza, porque o progenitor não consegue ganhar o sustento de todos com o seu trabalho, evidencia-se uma América pós-Segunda Guerra Mundial muito distinta da que era vendida como a terra dos sonhos e das oportunidades. Razão porque Harry Morgan, capitão do barco destinado a levar pescadores desportivos ao alto mar no golfo do México, vai enredar-se em esquemas alternativos, que só lhe agravam os problemas. Mas que fazer, quando os credores ameaçam ficar-lhe com a ferramenta de trabalho condenando-o definitivamente a buscar sustento em terra, algo para que não se sente talhado nem sequer sabe como fazer.
Primeiro fracassa a tentativa de levar emigrantes clandestinos do México para os Estados Unidos, quando o traficante chinês dá mostras de não querer pagar-lhe o serviço. Depois, a sua condição ainda mais se torna complicada, quando acede servir de cúmplice ao bando de criminosos apostados em assaltar o gabinete das apostas de um hipódromo, cabendo-lhe a ele levá-los para fora das águas territoriais.
De súbito, o homem honesto, marido mais ou menos exemplar e pai extremoso de duas pimpolhas, arrisca tudo perder - a família, o sócio - só porque o garrote se lhe apertou demasiado em torno da garganta. E, nesse turbulento final, em que se desenrola o duelo a tiro entre ele e os quatro ladrões, ele diz a frase-chave para clarificar a mensagem do filme: um homem sozinho não vale nada!
No penúltimo filme, que rodou antes de tão precocemente morrer, John Garfield transmite um dos conceitos mais coerentes de quem perfilha as ideias de esquerda: a força reside no coletivo, nunca no fútil esforço individual para pôr a cabeça acima da linha de água!
O filme possui uma outra vertente, que importa assinalar: o do triângulo amoroso, que tem por vértices Harry e duas mulheres, que por ele estão rendidas. A esposa legítima, interpretada por Phylis Thaxter - leva a devoção a ele a tal  ponto, que chega a ridicularizar-se na cena em que pinta os cabelos de louro para rivalizar com a mulher sofisticada - interpretada por Patricia Neal - que o parece seduzir.  Mesmo não sabendo se se consumara ou não essa suspeita aproximação.
Há, igualmente, a salientar a notável cena no hipódromo: em breves minutos Michael Curtiz quase reproduz todo o processo, que Kubrick levará uma longa metragem para desenvolver (Roubo no Hipódromo, 1956). Os cinéfilos mais atentos repararão que o desempenho do papel do advogado corrupto, que alicia Harry para os seus negócios escuros, foi confiado a um grande ator secundário - Wallace Ford - que apareceu em tantos filmes, sem que se lhe referenciasse o nome para lá de lho fazerem aparecer no genérico, mas sempre determinante no curso das intrigas em que intervém.
E resta aproximar o final em aberto - não sabemos se Harry morreu ou se sobreviverá amputado de um braço! - do Casablanca, que o mesmo Michael Curtiz rodara oito anos antes  com a diferença de, em vez do aeroporto, concluir-se aqui no cais de um porto de pesca com um miúdo negro à procura do pai, que nunca virá das profundezas para onde os bandidos o empurraram...

Sem comentários: