domingo, outubro 29, 2006

VIVA O TOUR - documentário de Malle, Ertaud e Clocquet

Era no tempo em que o Tour percorria a França de norte a sul e convertia-se numa enorme festa popular. O doping era quase desconhecido e, à beira das estradas, surgiam os espectadores mais inesperados (freiras e padres vestidos a rigor). Imperava o clima de quermesse popular em que todos eram estimulados para a «bonne franquette».
E, no entanto, os ciclistas possuíam um outro olhar para essa fila interminável de espectadores a vitoriá-los: a câmara adopta a sua perspectiva e a nitidez dessa multidão dilui-se num cordão humano impessoal de espessura impressionista.
O ciclismo, ainda que profissional, mantinha práticas de desporto amador: era normal a paragem dos atletas junto aos bistrots, ora para se abastecerem de líquidos, ora para muito simplesmente os esvaziarem. Para outros era desnecessária essa paragem: montados no selim, puxavam o pénis para fora dos calções e cumpriam a função enquanto pedalam.
Os heróis populares chamavam-se Anquetil - que ganharia cinco Tours - ou Raymond Poulidor, o eterno segundo classificado. Que por falhar a vitória por muito pouco acabava sempre por concitar as maiores simpatias.
Mas o Tour tem outras facetas menos festivas. Por exemplo a das quedas dramáticas, que suscita esgares de dor nas suas vítimas. Muitas vezes incapazes de explicarem como iam tão bem, semi-adormecidos na inércia de movimento do pelotão e, de repente, se viam emaranhados num novelo de rodas, pedais, guiadores e de corpos doridos.
Ainda pior os efeitos devastadores dos primeiros dopados, que não ganham forças à custa do que tomam, mas vêem adormecidas as dores do seu esforço sobre-humano. Quando nem isso lhes vale, têm uma explicação repetitiva para os seus «incómodos»: peixe estragado comido ao almoço.
Neste documentário notável sobre a mais prestigiada das provas velocipédicas, impressionam as imagens de um ciclista, que leva a sua exaustão até ao desmaio e consequente queda. Depois do seu transporte para o hospital, as duras condições de subida dos colos pirenaicos e alpinos já parecem desafios menos impressionantes.
Ainda que datado, «Viva o Tour» é uma evocação superlativa de um tempo de inocência, de descontraída crença nos valores depois estraçalhados pelo castrador liberalismo económico… O que transformaria essa festa num produto consumível e descartável ...

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