sábado, dezembro 29, 2018

(EdH) Quando os porcos iam a julgamento


Em tempos recentes têm surgido debates públicos sobre a importância de conferir uma identidade jurídica aos animais de forma a melhor protege-los das agressões contra eles perpetradas por alguns energúmenos que, de humanos têm muito pouco. A questão tem suscitado polémica, porque entendida por alguns como desenvolvimento lógico de serem proibidas as touradas ou os animais nos circos, enquanto outros se escandalizam por se pretender diluir a distinção entre os que são dotados de razão e os que se acredita não a terem. Embora seja difícil definir uma fronteira clara a propósito de algumas espécies comprovadamente muito inteligentes.
Surpreendentes são os estudos de alguns historiadores, que se têm debruçado sobre alguns casos de julgamento de animais durante a Idade Média. O caso melhor documentado aconteceu em 1386 na região de Falaise «, na Normandia, quando os porcos deambulavam livremente pelas ruas das aldeias e das pequenas cidades. Um dia, uma porca derrubou um bebé mal vigiado e começou a devorar-lhe um braço e o rosto, acabando por lhe provocar a morte.
Nos nove dias seguintes o tribunal reuniu-se para decidir que castigo aplicar-lhe, com os defensores e os acusadores a não pouparem-se a grandes exercícios de retórica em latim. No veredito ficou decidido que, depois, de exibida pelas ruas da aldeia e arredores, a porca seria enforcada e queimada.
Michel Pastoureau, reputado historiador francês, publicou na Gallimard um ensaio dedicado ao caso, com o título «Le Cochon. L’histoire d’un cousin mal aimé», no qual se fica a saber que, antes da execução, vestiram a condenada com roupa de mulher, e o juiz encomendou uma pintura a ela alusiva para ser afixada na igreja local, servindo de exemplo para memória futura. Mas não se ficou por aí, porque, apostado em evitar a repetição do crime, instou os criadores de porcos da região a trazerem os seus animais, incluindo as crias, para assistirem ao castigo. Na mente do justiceiro havia a convicção de serem os porcos capazes de entenderem e comportarem-se de acordo com a lei, privando-se de imitarem a infeliz congénere.
Décadas passadas ocorreu na Borgonha um caso semelhante: outra porca viu-se acusada de matar outro bebé e partilhá-lo com as crias no consequente festim. Reconhecida como culpada, depois de torturada, ficou registado em documento a sua confissão quanto à autoria do crime.
Numa conferência intitulada «Os animais perante a justiça: do castigo dos animais à responsabilidade humana»,  datada de 1966, Michel Rousseau detalhou que, ao longo de séculos sucessivos, esses julgamentos foram frequentes, assumidos pelas várias instituições capacitadas para os exercerem, desde os conselhos de aldeões aos parlamentos, sem esquecer a discricionariedade dos senhores feudais quanto ao veredito a emitir.. Mas era comum que o réu fosse aprisionado na companhia de vadios e outros meliantes.
Entre o século XIII e o século XVII a grande maioria dos animais sujeitos a julgamento  - há pelo menos trinta e cinco casos devidamente documentados - eram porcos, o que permitem concluir quanto à projeção antropomórfica dos humanos sobre esses animais, mas há, igualmente, que reconhecer a forte probabilidade de com eles ocorrerem acidentes com maior frequência por serem criados à solta em interação constante com as comunidades em que viviam. Além de pilharem as lojas ou devastarem jardins, facilmente derrubariam e agrediriam crianças, sendo considerados imputáveis quanto aos seus desvarios mais graves.
Conclui-se, assim, que, ao contrário do presente exercício do Direito, os animais da Idade Média eram julgados pelos seus atos, mesmo que os proprietários também se vissem obrigados a cumprirem uma peregrinação por não os terem controlado.

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