quarta-feira, dezembro 05, 2018

(DIM) «O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro» de Glauber Rocha (1969)


Quando este filme se estreou entre nós adotou o título escolhido para a distribuição internacional  - «António das Mortes» - e não o original, que remete mais explicitamente para a lenda de São Jorge e a sua luta contra o Dragão.
Cinquenta anos depois o filme continua atual com a agudização da luta de classes entre os latifundiários e os pobres, que recolhem as migalhas necessárias para sobreviverem sem se conseguirem libertar da sua exploração. Pelo meio surgem os que anseiam industrializar a região, substituindo-se aos coronéis, e os cangaceiros sobreviventes do genocídio perpetrado contra o bando do Lampião, que põem em causa os (des)equilíbrios latentes, com atividades ao mesmo tempo criminosas e anárquicas. Coirana, o chefe dos guerrilheiros, investe contra a cidade e ameaça: “homem vai virar mulher, mulher vai pedir perdão. Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai para a cadeia.”
António das Mortes também fora cangaceiro, mas tornara-se depois seu matador desde que despachara Corisco, o lugar-tenente do Lampião, dele enciumado pelo ascendente junto do chefe. Desde então levava no palmarés o assassinato de pelo menos uma centena de bandoleiros, continuando a trabalhar para empolar a lenda, acorrendo à região em perseguição de Coirana, o derradeiro dos da amaldiçoada estirpe.
Quem o contratara fora Mattos, precisamente o «empreendedor» cioso da segurança para as indústrias a ali serem implantadas. Num duelo com Coirana quase cumpre o contratado, mas é nessa altura que decide mudar de lado poupando o inimigo, apesar de quase o deixar moribundo. António revê o sentido das suas ações: se chegara como defensor dos interesses dos ricos a existência de Santa Bárbara, que tende a cuidar dos pobres, leva-o a mudar de lado. Não tarda que se veja, ele próprio ameaçado por abrutalhados jagunços, convocados pelo coronel para impedir a possibilidade dali chegar a Reforma Agrária, que sabe ser crescente aspiração do povo. As mortes e traições destroçam a periclitante unidade dos latifundiários e dos representantes dos interesses industriais, reduzindo a vila a um microcosmos momentaneamente esvaziado de quem assuma o poder. Qual cowboy solitário, António das Mortes sai dali alcançando a estrada asfaltada, símbolo de uma civilização, que se sobrepõe à que evoluía na simples poeira dos caminhos.
Carregado de simbologia e referências nem sempre acessíveis porque específicas do Nordeste brasileiro, o filme de Glauber fica entre a ópera e os relatos dos livros de cordel, demonstrando-nos que, cinquenta anos depois, muito do que está a acontecer no Brasil encontra explicação em muito do que já aqui estava explicito.

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