terça-feira, dezembro 11, 2018

(DL) «Le Quai de Ouistreham» de Florence Aubenas


Há muito que não ouvimos falar de Günter Walraff, hoje septuagenário a viver a merecida reforma, mas outrora capaz de nos legar interessantes reportagens, quase sempre caracterizadas pela sua imersão num ambiente controverso em que se integrava como momentâneo camaleão até dele trazer informações bastantes para denunciar-lhes as malfeitorias. Spínola, por exemplo, foi um dos por ele iludidos, quando, ao leme do MDLP, pretendia repor o regime fascista em Portugal.

A belga Florence Aubenas insere-se na mesma escola de jornalismo, arriscando a pele em contextos complicados, que lhe valeram o rapto a que se sujeitou no Iraque em 2005, vivendo então cinco meses de intimidante cativeiro.
Quatro anos depois publicou uma outra reportagem - «O cais de Ouistreham» - em que dá conta do que significa ser um trabalhador precário nos dias de hoje. A luta dos estivadores de Setúbal ou o desespero de muitos «coletes amarelos», que se deixam instrumentalizar atualmente em França, tem muito a ver com a realidade, que Florence quis viver na primeira pessoa. Partiu para Caen e procurou emprego nas agências, que fazem negócio com a intermediação entre empregados e empregadores. Apresentando-se como não tendo qualificações especializadas, ela é logo avisada de estar fadada para penosas condições de trabalho e horários aberrantes, em competição com muitas outras mulheres em idêntica situação. O que lhe propõem é tornar-se empregada da limpeza, ou seja, um prolongamento do aspirador, como lhe confidencia Victoria, uma das suas colegas.
Não tarda a descobrir um mundo paradoxal, com ódios mesquinhos e fraternas solidariedades. Mas também o frio, o ritmo frenético que a obriga a limpar cada casa de banho do ferry de Ouistreham em apenas três minutos, o pagamento irrisório, que não chega para consultar o médico ou o dentista, quando é necessário. E também a obrigatoriedade de ter carro - arranja um velho Fiat de 1992 - para conseguir deslocar-se entre os vários locais, que lhe calham na escala. Ou um telefone para ser contactada sempre que necessário.
O pagamento não se faz na lógica de um salário regular, mas do número de horas que são contabilizadas como trabalho, dele se excluindo as muitas, que se vão perdendo nas deslocações.
O livro acaba por ser um violento murro para quem desconhece esta realidade e dela se instrui sem o conforto dos sentimentalismos ou da demagogia. Porque são pessoas concretas, que Florence contacta e de quem traça retratos impressionantes. E que perderam a ligação à política, ao sentido de integrarem um coletivo, que as orientasse para a defesa dos seus interesses  comuns. O que fica é a convicção de, por trás de uma aparente normalidade, andarem escondidos muitos sentimentos de revolta prontos a explodir.

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