terça-feira, dezembro 18, 2018

(AV) A Veneza insolente na sua aparência magnificente


Uma exposição no parisiense Grand Palais pretende mostrar quão magnificente foi Veneza no século XVIII. Um documentário na ARTE, que pretende complementar a iniciativa, dá-a como insolente. E assim é, se atendermos às experiências libertinas de Casanova, ou também de Sade, que ali se refugiou, quando perseguido em França.

Olhando para os quadros de Canaletto encontramos uma cidade com música espalhada por todos os recantos, fossem igrejas ou palácios, e sete teatros, quando Paris só com um contava. Havia, igualmente, o Carnaval a prolongar-se por seis meses, misturando gente de todas as classes e grupos etários, escondidos nos disfarces, a entregarem-se à volúpia dos prazeres imaginados, e quantas vezes concretizados.
Bem podiam as jovens órfãs do l’Ospedale esconder-se por trás das grelhas do piso superior da igreja della Pietá, que as vozes celestiais a entoarem as composições de Vivaldi, instilavam húmido erotismo nos ouvintes como o próprio Rousseau testemunhou. E, quando os castrati, como Farinelli, contornaram a proibição religiosa de mulheres em cena, era sempre o sexo que pairava pelas cabeças dos espectadores, quando escutavam os trinados agudos e sabiam como  se haviam tornados possíveis.
A luxúria torna-se omnipresente na mente dos venezianos como o próprio Tiepolo explicitou num quadro em que Cleópatra seduz Marco António num banquete e lhe revela o seio como chamariz para os seus outros encantos. E há uma urgência, que explica a rapidez com que se compõe ou escreve: diz-se que houve um dia em que Goldoni pediu ao compositor das «Quatro Estações», uma obra para uma peça a levar à cena no seu teatro de commedia dell’arte e foi instado a esperar uns minutos, porque a teria de imediato pronta a ser executada. Talvez por essa facilidade na criação - terão sido mais de setecentas e cinquenta as composições vertidas para partitura - Vivaldi ficaria esquecido até ao início do século XX, altura em que se viu recuperado como um dos nomes fundamentais do período barroco. Mas o próprio Giovanni Antonio Canal não terá demorado muito tempo a pintar as minuciosas telas sobre a cidade, porque contava com a preciosa ajuda de uma camara oscura, que lhe funcionava como precioso auxiliar da visão.
Quem viveu nesse século XVIII, idos os tempos dos rentáveis entrepostos por todo o Mediterrâneo, não imaginaria como a aparente magnificência escondia o iminente desastre. Em 1897, quando Napoleão a conquistou, já Veneza estava agonizante.
No século seguinte, quando os austríacos se sucederam aos franceses como ocupantes, os românticos passaram a ver a cidade como metáfora para a incurável nostalgia. Goethe lançou a moda de nenhum intelectual europeu digno desse nome a deixar de visitar e Wagner ali morreria, depois de compor Tristão e Isolda.
Nada disso perpassa pelas mentes da grande massa de turistas, que a invadem diariamente e ali se multiplicam em selfies, para mostrarem aos amigos e familiares ali terem estado. Chegam e partem sem nada intuírem do espírito do lugar, porque esse só se pressente à noite, quando a cidade se esvazia e o eco dos passos ressoam nas vielas e nos becos, ou de dia, quando se vai além da Praça de São Marcos, do Rialto e das margens do Grande Canal, chegando-se aos remanescentes estaleiros do Dorsoduro, onde se reparam e constroem gondolas, ou no sentido contrário, dando com o cemitério de San Michelle ao virar a esquina num cais só frequentado por quem ainda ali mora.

Sem comentários: