sexta-feira, dezembro 14, 2018

(DL) Lendo sobre Trotsky e Saramago


Costumo dividir-me em leituras simultâneas, com vários títulos a sucederem-se nas horas diárias dedicadas a outros universos ficcionais, ensaísticos ou biográficos. Nesta altura entre os que se acumulam na mesa de trabalho sobressaem dois, um de Leonardo Padura e o outro sobre a vida e obra de José Saramago.
Em «O Homem que gostava de cães» o autor cubano distribui as seiscentas páginas do relato por três personagens principais: Trotski, aqui sempre crismado de Liev Davidovitch, um jovem escritor mais ou menos caído em desgraça junto das autoridades de Havana e um espanhol por ele conhecido em 1977, apreciador de cães - mas quase todos quantos surgem no romance partilham esse gosto -, que começamos por julgar ser Ramon Mercader, mas acaba por se dizer alguém que o terá conhecido.
Sobre o revolucionário russo vamos acompanhando o dificultoso périplo pelos vários locais de exílio, depois de definitivamente afastado da liderança bolchevique pelo hábil Estaline. De Alma-ata até aos arredores de Istambul, dos subúrbios de Paris até a uma pequena aldeia alpina, dos fiordes noruegueses até ao México onde o regime de Cardenas acede, enfim, a recebê-lo, vamos assistindo aos medos quanto à sua segurança e à dos familiares mais próximos, dada a condição de pária em que se sente, rejeitado por governos indispostos com a sua presença, e ao mesmo tempo ameaçado por fascistas, que lhe verberam a ideologia, e, sobretudo, pelos comunistas, convencidos por Moscovo de se tratar de um traidor à causa, capaz de conspirar com os nazis para assegurar a derrota do regime, que dos proletários já nada tem, porque apossado de vez por timoratos burocratas incapazes de emitirem a menor crítica ao futuro Pai dos povos. À distância, Liev Davidovitch vai conhecendo o triste destino dos antigos amigos, que ora se matam como aconteceu com Maiakovitch, ora são fuzilados mesmo depois de o terem acusado falsamente do que Estaline mandou que eles denunciassem.
Por Ramon Mercader voltamos a essa época terrível em que, esquecendo-se de conjugar forças contra Franco, os republicanos de Barcelona ajustaram contas entre si, com os estalinistas a atacarem e a esmagarem os anarquistas e os trotsquistas. Uma lição que continuaria desaprendida nas décadas seguintes, quando o sectarismo condenou as esquerdas a muitas derrotas perante as direitas que, nunca se debatendo com escrúpulos ideológicos, sempre se associaram para impedir o avanço progressista da Humanidade.
Sobre Saramago não conjeturei ler a biografia não autorizada de Joaquim Vieira, mas mão amiga emprestou-mo, incentivando a não dar tanta importância às tontas teses do autor sobre o significado da Democracia - como se o nosso Nobel não passasse pelo escrutínio de seu cultor! - nem à andropáusica curiosidade de enfatizar o que tivesse a ver com estórias de alcova.
Pegando no objeto com essas eufemísticas pinças, não tenho dado o tempo por perdido. Após ter lido as páginas sobre a infância e a adolescência do futuro escritor, ora vivendo em Lisboa durante quase todo o ano, ora passando o estio na ribatejana Azinhaga, terra dos avós, cheguei à sua condição de operário letrado, com muitos serões nas bibliotecas municipais onde complementava os conhecimentos, que a escola industrial não lhe haviam facultado.
Vou agora na publicação do primeiro romance, «Terra de Pecado», cujo título nunca sentiu como seu, porque imposto pelo editor. As críticas animosas poderiam tê-lo motivado a torrencial produção literária, porque apenas lhe apontaram o excesso de páginas para tão curto enredo e personagens mais próximos do estereotipo do que de real substância. Mas assim não sucedeu, porquanto a produção dos anos seguintes foi destinada à gaveta ou nem sequer conservada. O autor estava decididamente a nascer, apesar de passarem muitos anos até alcançar um dos períodos criativos, que justificou a opção de ser um dos meus escritores preferidos. Refiro-me à chamada Trilogia da Pedra—«Ensaio sobre a Cegueira», «Ensaio sobre a Lucidez» e «As Intermitências da Morte» - quando, segundo o próprio escritor, deixou de se focalizar na estátua, para concentrar-se na pedra, através de narrativas pontuadas por um fenómeno singular ao qual o governo reage de forma pouco inteligente.
Num ano, que tem sido de excelentes leituras, estas últimas semanas prometem ser assaz proveitosas...

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