quarta-feira, novembro 02, 2016

No centenário de um homem coerente

Sendo este o ano do centenário de Mário Dionísio, volta à colação a sua divergência com os companheiros do movimento neorrealista, de quem se veio a dissociar por entender indissociável a função utilitária da arte com a sua efetiva expressão estética. No fundo aquilo que ouvi há algumas semanas a José Mário Branco, quando a entendia como obrigatoriamente respeitadora de três pilares imprescindíveis: o técnico, o estético e o ético.
Na época a questão punha-se nestes termos: conquanto traduzisse uma mensagem ideológica  coincidente com o objetivo de transformação da sociedade, a obra tinha reconhecido valor, ao contrário de outra cujo conteúdo não a direcionava para tal. Dava-se, pois, primazia a uma visão do que era eticamente adequado, independentemente do talento ou da impressiva beleza dessa expressão criativa.
No fundo verificava-se a reprodução do debate ocorrido nos primeiros anos da Revolução Bolchevique, quando as vanguardas com ela conotadas desde o primeiro momento, se viram fustigadas pela crítica e pela censura de quantos não tardaram a impor o realismo social como única escola estética aceite pelo regime soviético. E, no entanto, quantas dessas obras literárias, cinematográficas, teatrais ou das várias expressões das artes plásticas conseguiram resistir ao veredito do tempo e conseguem ainda ser apreciadas se nos dissociarmos da curiosidade por quanto está irremediavelmente datado?
Foi  esse debate o que dividiu os neorrealistas puros e duros com os que, no final dos anos 40, não se mostravam insensíveis ao que vinha de terras gaulesas com Camus a dissociar-se da maioria da intelectualidade dessa época, com Aragon de um lado, e Sartre do outro, a verberarem-lhe o excessivo pendor individualista.
Mário Dionísio terá sofrido bastante com as provocações, as intrigas e os boicotes a que foi sujeito, sobretudo depois de se ter demitido do Partido Comunista a que aderira em 1945.  Ele que tivera em Álvaro Cunhal um dos seus amigos mais próximos, recusar-lhe-ia anos depois o convite para o reatamento da relação epistolar proposta, apesar de, publicamente, ninguém lhe ter conhecido um queixume ou uma crítica contra uma ideologia de que nunca se terá provavelmente dissociado no íntimo, mas cujas fronteiras estabelecidas por quem dela se entendia dono, lhe eram demasiado estreitas por quanto lhe solicitavam a imaginação e a criatividade.
Não deixa de ser curiosa a evolução de um dos seus principais críticos de então, esse António José Saraiva (pai da viscosa criatura, que publicou há pouco um livro de mexericos!), que, de líder dos mais ortodoxos se converteria a uma ambígua viragem, quando pressentiu não ser para o seu tempo de vida os amanhãs cantantes exequíveis logo após finda a Segunda Guerra Mundial.
Dionísio terá sido o contrário desse vira-casaquismo tão frequente na intelectualidade europeia do seu tempo. Cem anos passados sobre a data do seu nascimento podemos apreciar-lhe a obra como sinónima da mais irrepreensível coerência.

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