segunda-feira, novembro 21, 2016

(DL) «A Tempestade» de William Shakespeare (II)

A atmosfera de «A Tempestade» parece purificada por um furacão. O cenário da ação fica na margem solitária de uma ilha sacudida pelas ondas, banhada por uma luz doce e harmoniosa. É nesse ambiente sereno, que se ouvem as vozes sobrenaturais. Graças a essa cumplicidade dos céus, a ilha parece ter sido tomada pela graça divina. Tão suave influência celeste confere solenidade a uma representação sagrada inerente aos acontecimentos ocorridos perante os nossos olhos num curto lapso de tempo. Esta é, aliás, a única peça de Shakespeare que se insere na famosa unidade de lugar, tempo e ação.
Ainda que se possa suspeitar de que Shakespeare não tenha lido o «Purgatório» de Dante, o clima do drama lembra o da ilha imaginária concebida pelo poeta italiano. Mas há algo de semelhante às «Euménides» de Ésquilo.
Para todos esses escritores a justiça decorre de um ritual de expiação. O tom é o mesmo, o da indulgência. E, igualmente, uma mesma visão do mundo expressa em termos de ordem e de harmonia: a música de Ariel, os hinos cantados pelas almas do Purgatório, o som da cítara de Apolo.
Depois de «Hamlet», «A Tempestade» é o drama de Shakespeare, que suscitou maior número de estudos. Quer nas tiradas líricas de Ariel, quer nos discursos de Prospero, sente-se que o autor, pela boca dos seus personagens, dirige-se ao mundo e exprime a sua própria cosmogonia. Por isso será porventura o mais pessoal dos seus escritos, sobretudo quando diz a célebre frase: “Somos feitos da mesma matéria que os sonhos e a nossa curta vida cinge-se a um deles”.
As personagens de «A Tempestade» elevaram-se até hoje a uma dimensão mítica, infinitas vezes representadas, citadas, encenadas, que encarnam e simbolizam uma plêiade de comportamentos e sentimentos humanos. Muitas vezes Ariel e Caliban replicaram os povos primitivos e os escravos que serviram de meros joguetes das estratégias das potências coloniais, sem chegarem a compreender o que com eles pretendiam alcançar.

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