sábado, novembro 05, 2016

(DL) Um herege nos tempos de D. João V

Teria a Inquisição dado importância aos propósitos hereges de Pedro Rates de Henequim se ele se tivesse cingido a dar a sua versão muito singular dos escritos bíblicos pelas ruas de Lisboa, tentando convencer os concidadãos da conformidade do prazer sexual com os propósitos divinos?
Quase por certo não, que o Tribunal do Santo Ofício estava mais orientado para detetar e queimar judeus do que propriamente lunáticos a quem quase ninguém dava importância.
O problema foi que Henequim quis convencer os espanhóis a apossarem-se de uma das encostas da Serra Pelada onde existiriam riquíssimas minas de diamantes e de ouro e, não sendo por eles atendido, terá procurado o infante D. Miguel em Belas para o convencer a sair para o Brasil e aí declarar a independência em relação ao reino português.
Ora o Brasil era demasiado precioso para que nele se fomentassem ideias secessionistas. É que, apesar dos carregamentos inesgotáveis, que de lá provinham, D. João V tinha um feitio tão gastador, que o Tesouro do Reino estava sempre esgotado.
Acaso sentisse alguma folga, logo o magnânimo monarca inventava um novo palácio ou convento a construir, sempre luxuriante no recurso às talhas douradas e a outros artifícios decorativos do gosto barroco.
Henequim será assim conduzido ao Palácio dos Estaus, ao Rossio, donde envia sucessivas cartas ao inquisidor-mor no sentido de, contando a sua história, convencer o cardeal D. Nuno da Cunha e Ataíde da sua inocência. Mas os meses passam e esses apelos nenhuma resposta suscitam.
Delas contemporâneas são igualmente outras missivas enviadas pelo irmão de Bartolomeu de Gusmão ao embaixador de Portugal em Paris, D.  Luís da Cunha, a quem faz autênticos relatórios do estado do rei a quem serve de secretário. Graças a tal função Alexandre de Gusmão está num ponto de observação privilegiado para testemunhar a libidinosidade do rei a quem não basta a abadessa Paula do convento de Odivelas, deitando-se igualmente com algumas outras senhoras da corte.
A vida de excessos redunda num AVC, que quase o mata, mas de que vai recuperando o bastante para fazer o balanço de tudo quanto fizera até ali.
Apesar de iluministas, e como tal críticos latentes da realidade aristocrática em que vivem, quer Alexandre, quer D. Luís da Cunha, nunca deixam de vestir a capa inerente às suas funções. E, no caso do secretário do rei, a aversão à Inquisição, que lhe perseguira o irmão, não o impediu de a ela recorrer como forma de silenciar de vez o impertinente pregador, impedindo-o de criar ideias subversivas na já tensa comunidade brasileira.
Baseado em situações reais, que o autor coligiu num aprofundado trabalho de investigação, «Ouro Preto» é uma belíssima surpresa de leitura, pois Sérgio Luís de Carvalho não só respeita o vocabulário da época como aproveita para nos prodigalizar uma lição de História portuguesa.
Ao chegar à última página interrogamo-nos como foi possível esbanjar tanta fortuna, mantendo o reino mergulhado na pobreza. E concluímos que, infelizmente, ao longo dos séculos, os portugueses foram muito mal orientados pelos seus líderes.
"Retrato de D. João V e a Batalha do Cabo Matapão" de Giorgio Domenico Duprà

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