quinta-feira, novembro 17, 2016

(DL) «A Fronteira» de Pascal Quignard

Há um quarto de século o escritor francês Pascal Quignard deu conta, em livro, do fascínio nele suscitado pelo Palácio de Fronteira.
Constituindo um dos mais belos monumentos do século XVII é também dos que mais surpreende pela qualidade, e sobretudo, originalidade temática dos azulejos. Estes, já datados do século seguinte, apresentam animais a travestirem a vida quotidiana em alegorias burlescas ou satíricas, presenças silenciosas, inquietantes ou fantásticas.
A história contada nesta pequena novela ressuscita os enigmas das sombras dessa época e decifra-as na revelação de uma dupla vingança.
Um dos protagonistas, o francês Jaume, é dos maiores salafrários do seu tempo. Com o seu grupo de amigos investe as redondezas de Lisboa e viola as mulheres, que encontra suficientemente desprotegidas para lhe escaparem aos ardores da libidinosidade.
Há, porém, uma frustração que o obceca: a bela Marquesa de Alcobaça escusou-se a desposá-lo e, como vingança, ele mata-lhe o marido a coberto de um crime quase perfeito.
Iludida pela falsa amizade que ligara Jaume ao defunto a quem até supostamente tentara salvar do ataque celerado de um javali, a viúva permite-lhe o assédio e acaba-lhe nos braços poucas semanas depois da tragédia.
O pior para ele veio depois: a amante começa a ter sonhos recorrentes sobre esse episódio de caça com a verdade a aproximar-se noite após noite. A verdade acaba por prevalecer e ela vinga-se, capando-o e deixando-o exangue na correspondente hemorragia.
Apesar da dimensão reduzida da história, Quignard não a cinge a esse triângulo amoroso, porque rodeia-o de um conjunto de outros personagens não menos interessantes, como é o caso do Rei João IV, acabado de sair vitorioso das guerras da Restauração ou o marquês de Fronteira em cuja casa - então ainda em morosa conclusão - se passam muitos dos momentos mais significativos da intriga. Eros assume aqui o seu lado mais violento com a paixão e os seus instrumentos a serem sacrificados num fatal combate entre o amor e a morte. Por isso mesmo acaba por constituir uma metáfora do tema do olhar com a castração a tornar-se na sanção do desejo viril condenado ao vazio.
No final do romance Quignard põe o regente Pedro II (também ele envolvido numa conspiração para roubar o poder e a mulher a um rival, neste caso seu irmão) a comentar para o príncipe da Toscana, Cosme de Médicis, a quem serve de cicerone na visita ao Palácio: “O homem está perdido nos seus desejos como as caravelas nos novos mundos. Como o que sonha fica perdido no seu sonho”.

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