segunda-feira, novembro 14, 2016

(DL) «O Cerco de Cartum» de Olivier Rolin (4)

Na fase final do romance de Rolin, o narrador partilha com Vollander e Else a liderança das escavações em Meroe. Mas o ambiente entre eles é péssimo, porque o alemão vota m ódio visceral à jovem arqueóloga designada para o substituir naquele projeto: “ Muitas coisas permanecem para mim misteriosas, como por exemplo, as razões profundas daquele ódio. A mais evidente, a mais provável, parece ser o facto de Else estar ali para substituir a filha morta. (pág. 147)
Sem complacência para consigo mesmo, o narrador confessa ter participado na ostracização da rapariga, como se a quisesse punir por não ser Alfa, apesar dele ter querido ver nela esse objeto amoroso definitivamente perdido: “Acabei por tomar parte neles, por aceitar a aliança tácita que ele me propunha contra ela. Mantive-a, eu também, à distância, confinei-a juntamente com ele à solidão e ao temor. Gostaria de acreditar que foi ele, de facto, quem me conduziu àqueles extremos, que a responsabilidade era do estranho ascendente que ele tinha sobre mim desde a primeira noite, no ano passado, no Hotel dos Solitários:  mas seria uma cobardia suplementar. Mais vale dispensá-la. (pág. 151)
Pobre Else, sujeita a tremendo assédio moral nos confins do deserto subsariano! E, para agravar o clima tenso no acampamento, os operários recusam-se a trabalhar durante o Ramadão apesar de estar iminente a revelação de um dos primeiros monumentos religiosos da era cristã!
Naquela impotência existe um paralelo entre Vollander e esse Gordon que, décadas atrás, fora decapitado pelos apoiantes do Madi, sem que as tropas enviadas em seu socorro chegassem a tempo.
Exasperado, o narrador foge de Meroe e regressa a Cartum recuperando o quarto no «Hotel dos Solitários». Não assiste, assim, à morte de Else, asfixiada pela areia, esmagada por tijolos, que ruíram por não estarem devidamente fixados. Mas quem sabe se, mais do que um novo acidente, não terá havido intervenção de Vollander para eliminar quem tomara o lugar da filha?
Sem exagerar na especulação, o narrador acredita que a avalanche terá sido preparada pelo alemão para, depois de contemplada uma pequena parcela da Meroe soterrada, a devolver nessa mesma condição ao esquecimento. No fundo estaria perante uma manifestação de puro egoísmo de quem pretende reservar exclusivamente para si algo de único.
As outras hipóteses parecem-lhe descartáveis: “Vollander terá matado Else porque lhe votava um amor não correspondido? Nunca tinha pensado nisso. Não, não acredito. Terei eu deixado que a matassem para me vingar magicamente de Alfa? Não, é demasiado forçado.” (pág, 183)
No final do romance o narrador é devolvido à solidão, que se tornara a sua zona de conforto. Vollander ou Else tinham-lhe demonstrado a incompatibilidade entre a sua magoada melancolia e os egoísmos ou ambições alheias. A recordação de Alfa promete ser doença incurável, que vai mitigando com alguns comportamentos estranhos até mesmo para os sudaneses, que olham para ele com a curiosidade de quem vive em esquemas de pensamento completamente diferentes.
“Todas as histórias podem dizer-se de outra maneira. A de Alfa, contei-a a meu modo. E nem sequer é o meu modo, mas aquele que me esforcei para que fosse meu. Porque, permitam-me: é muito bonito a gente armar-se em estóico, mas também há a dor. Por vezes, sozinho no alto da roda, uivo ao vento, por cima dos Nilos cuja bifurcação desenha imensas guilhotinas, uivo como um demónio, e as raparigas e as famílias olham para mim com um pavor compadecido. Os loucos não são rejeitados, aqui. Muitas coisas são possíveis, e entre elas, também, que eu tenha procurado, através destes anos todos desde a partida dela, inventar razões engenhosas ou poéticas para não a odiar. Que ninguém me tire isso, por favor. É necessário às vezes muito sangue e muitas lágrimas para se conseguir uma pequena felicidade burguesa, o que é ainda outra história, e contudo a mesma. Uivo por cima do Nilo azul, e do branco, do negro e do vermelho e do verde, de todos os Nilos que descem do Paraíso ou das trevas para abarcar o Inferno. Não dura muito tempo, olham para mim acenando afavelmente a cabeça, e não me querem mal. É o sol, digo eu, não é grave. Os Brancos têm uma cabeça de cartão. Regresso àquilo que me esforço por considerar eu-próprio.” (pág. 187)

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