sexta-feira, julho 04, 2014

FILME: «Romance Popular» de Mario Monicelli (1974)

Em 1974 a comédia italiana estava quase a despedir-se dos seus anos de ouro, aqueles em que os filmes de Monicelli, Comencini, Risi entre outros iam subtilmente da emoção ao humor e vice-versa.
Estreado no grato ano da nossa Revolução dos Cravos, «Romance Popular» é um exemplo ilustrativo do talento do primeiro daqueles cineastas, que se socorria de uma dupla de argumentistas de exceção (Age e Scarpelli) para, através da tradição colhida em Eduardo di Filippo, emitir mensagens de esquerda através do desempenho de alguns dos mais populares comediantes de então. Neste caso tínhamos Ugo Tognazzi, que era um dos principais atores de comédia e Ornella Muti, então a afirmar-se como um dos mais belos rostos do seu tempo.
Ele interpreta o papel de Giulio Basletti, um operário metalúrgico de Milão que, além de celibatário empedernido, é um entusiástico sindicalista e um fervoroso adepto de um dos grandes clubes locais.
Dezassete anos depois de a ter visto pela última vez - quando ela era ainda uma criança - Giulio reencontra Vincenzina, a filha de um dos seus colegas, que emigrara para o sul. Em poucos meses estão casados e pais do primeiro filho.
Entra então em cena o terceiro elemento do triângulo amoroso, o polícia de choque Giovanni, interpretado por Michele Placido, que conheceríamos mais tarde no desempenho da série «O Polvo».
Esse Giovanni fica ferido na cabeça durante uma manifestação, ao ser atingido por um objeto de metal atirado por Salvatore Armetta, um vizinho e amigo de Giulio.
Quando se desloca ao bairro para o confrontar com o seu gesto, Giovanni depara com a grande resistência de Giulio e dos demais habitantes do bairro, que não aceitam ver Salvatore alvo de qualquer punição.
Mas, como o futebol tende a curar as desavenças, Salvatore e Giovanni não tardam a converter-se nos melhores amigos, passando a frequentar-se mutuamente.
Quando a família de Vincenzina fica enlutada, Giulio vai ao funeral na Campânia, mas volta enciumado pelas suspeitas de um relacionamento adúltero da mulher com o polícia. E as dúvidas ficam esclarecidas, quando ouve às escondidas uma conversa entre ambos.
Confrontando-a com as provas, Giulio tenta controlar-se, demonstrando abertura de espírito e pronto a render-se à moral moderna na condição de que a infidelidade permaneça secreta.
O pior é quando recebe uma carta anónima a denunciar o caso amoroso, que passou, pois, a ser do domínio público. Para compor a imagem expulsa a mulher e o filho de casa e tenta suicidar-se com gás. Mas, numa súbita mudança de opinião, opta por vingar a honra, deslocando-se à casa de Giovanni, onde Vincenzina se refugiara.

Escondida com o filho na casa de banho, Vincenzina ouve a discussão entre os dois homens, ficando a saber que a autoria da carta anónima era de Giovanni, decidido a reivindicar a propriedade dela. Indignada, foge pela janela, abandonando-os aos dois para decidir por si mesma do seu futuro.
Anos mais tarde encontramos Giulio já reformado e Vincenzina como chefe de departamento de uma empresa têxtil e membro da respetiva comissão de trabalhadores. O único laço que os prende é o filho.
Por seu lado Giovanni fora transferido para outra prefeitura e aí fundara família.
É com o objetivo de concretizar a reconciliação entre todos eles, que Giulio os convida para almoçar.
Compreende-se, pois, que seja Vincenzina a personagem principal, começando por ser a ingénua provinciana, que vai à procura de trabalho na grande urbe  e vai passar por uma evolução progressiva, com o estado intermédio de esposa alienada, até se afirmar plenamente na condição de mulher, de operária e de mãe divorciada.
Não se trata apenas de uma comédia de costumes, como se comprova na cena em que a discussão entre Vincenzina e Giulio deriva para a reivindicação deste quanto à posse dela, não só por amor, mas também pelo machista instinto de propriedade.
Estabelece-se assim uma espécie de relação de forças entre parceiros amorosos, que tem alguma similitude com os que se verificam nas lutas de classes. Apesar de sindicalista ativo, Giulio não hesita em querer dominar a família da mesma forma que o patrão explora os operários.
Vincenzina passa por um processo de desalienação progressiva, que recusa qualquer compromisso quanto ao papel de mãe/ esposa/ objeto sexual. Escapa assim à lógica das fotonovelas (daí o título «Romanzo Popolare»), que procuravam consolidar a cultura de submissão nas mulheres, que as consumiam.
Por seu lado Giulio nunca consegue dissociar-se do papel tradicional para que fora talhado por muito que tente representar, sem êxito, esse outro que implicaria uma visão aberta perante o caso de adultério, que acabara por comprovar.
“No fundo não passo de um miúdo”, acaba por reconhecer e, por isso mesmo, sempre privilegiara o seu «bando de amigos» com quem vivera as maiores experiências de cumplicidade. Anuncia-se, pois, o projeto seguinte do cineasta, esse «Oh Amigos Meus», que muitos lembram pela impagável cena do grupo de homens já maduros que iam para a estação ferroviária dar chapadas a quem se debruçava para se despedir dos familiares.
Dissociando-se de qualquer lógica miserabilista, «Romanzo Popolare» revela a coerência de um cinema profundamente enraizado na realidade da Itália de então. Uma herança que terá sido esquecida, ou pelo menos passou a ser desenvolvida com menos talento pelos que ainda vão tentando revisitar o género.



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