Em 2003, quando «Duas Sombras do Rio» foi publicado, Moçambique já vivia em relativa paz há dez anos. O regime de partido único, de matriz marxista, dera lugar a uma aparente democracia aonde se iram integrando os terroristas da Renamo, responsáveis por tantas mortandades nos anos subsequentes à independência.
O livro de João Paulo Borges Coelho reflecte essas transformações, suficientes para perturbarem os moçambicanos, de alguma forma representado nesse Leónidas Nsato, um perdido de si mesmo, passando a vaguear pelos acontecimentos como se fantasma fosse, sem entendimento para ultrapassar a condição de indiferente espectador.
Mas apresentam-se, igualmente, outros aspectos plurais de uma realidade complexa como o é o da caça furtiva de elefantes e rinocerontes, causadora de uma funesta depredação da riqueza zoológica do país.
A acção localiza-se fora dos grandes centros populacionais, nesses cus de judas situados junto à fronteira com o Zimbabwe por onde os rios correm caudalosos e os terríveis nhacocos (crocodilos) dão cabo dos mais imprevidentes. Sobretudo, quando a estes resta uma de duas possibilidades igualmente temerosas: escaparem dos terroristas, que assassinam e deitam fogo a tudo quanto alcançam, ou darem-se às vicissitudes de um rio para cuja travessia são escassas as almadias.
O romance de Borges Coelho vem demonstrar que a literatura moçambicana está longe de se cingir a Mia Couto. Sendo aqui muito mais clara a descrição do contexto histórico, mesmo perdendo-se em poesia e invenção da língua. E contando-se com personagens tão interessantes quanto o são Mama Mére, a cantineira congolesa, que já percorreu todo o cone sul africano e se encarrega da venda das presas de marfim, ou esse tenente Zvovo, zimbabweano, que joga com ela um verdadeiro confronto entre gato e rato. Ou ainda a enfermeira Inês, a contragosto conduzida à condição de meretriz do feroz Salamanga até encontrar a oportunidade de dele escapar levando consigo uma coluna de fugitivos ao jugo terrorista.
É claro que se sente aqui a imaturidade inerente a um romance de estreia, mas o domínio da história e da língua, já revela um autor original a ter em conta nos sucessivos títulos, que dele viermos a descobrir.
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