Até alguém tão insuspeito como Baptista Bastos reconhece que Louis Ferdinand Céline foi um escritor genial. Mas também um desprezível crápula! E o que mais surpreende muita gente é como pode ser possível essa associação entre um imenso talento e um comportamento pessoal execrável.
É esse o tema do documentário de Antoine de Meaux, que lembra o seu regresso a França em 1957 depois de um longo exílio na Dinamarca e quando estava reduzido à condição de pária pelos seus colegas escritores de então.
Como romance de denúncia da estupidez da guerra, do colonialismo e da solidão dos seres escravizados pela sociedade industrializada, «Voyage au bout de la nuit», escrito em 1932 , continuava a ser admirado como um dos romances mais brilhantes de entre quantos foram publicados na primeira metade do século, mas poucos estavam dispostos a esquecer o miserável colaboracionismo de Céline durante o governo de Vichy. E, no entanto, as suas origens familiares já faziam prever o que ele faria no contexto do nazismo: nascera numa família burguesa com pretensões aristocráticas e de assumido anti-semitismo.
Os títulos seguintes de Céline não tinham tido a receptividade encorajadora daquela obra de estreia: em «Summelweis» homenageia o médico húngaro incompreendido, que descobrira a relação entre as mortes nos partos e a falta de limpeza das mãos dos médicos comprometidos em tais operações. Depois, em 1936, surge «Mort à Crédit», que é rejeitado pela crítica por ser considerado pornográfico e violento numa altura em que a subida ao poder da Frente Popular suscitava um repúdio do que sugeria a sordidez da realidade.
Mas se Céline ainda se conotava com a esquerda francesa, a viagem à URSS afasta-o completamente dessa opção política e realça o que de pior ele virá a escrever: «Bagatelles pour un massacre» é um panfleto anti-semita, consonante com a concomitante propaganda nazi, que culpava os judeus pela iminência da guerra então em preparação.
E já concretizada a Ocupação alemã de Paris, ele publica outro panfleto, «L’École des Cadavres», quando frequentava assiduamente a boémia de Montmartre. Época também das suas cartas para os jornais colaboracionistas em que denunciava explicitamente judeus ainda a ocuparem funções como médicos ou funcionários públicos a fim de os ver despedidos.
Admirador de Doriot, Céline surge em 1942 a apoiar a tentativa de federar todos os movimentos colaboracionistas em torno das bandeiras do nazismo e do anti-semitismo.
Compreende-se assim porque, pressentindo a reviravolta política, ele tenha fugido para a Alemanha em Junho de 1944, partindo depois para a Dinamarca, aonde é aprisionado durante dezoito meses. Azar dos que, como Brasilach ou Drieu de la Rochelle, não fugiram e acabaram ou fuzilados ou suicidados. Apesar de condenado à revelia, Céline acabará amnistiado, apesar de levar anos a defender um discurso negacionista a respeito das câmaras de gás.
Mas o estigma do seu revelador passado jamais o voltaria a deixar...
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