quarta-feira, junho 29, 2016

(DL) «Uma Menina Está Perdida no seu século à Procura do Pai» de Gonçalo M. Tavares

Uma das maiores novidades, que terá sucedido a um dos colegas de escola da minha filha, quando andava no ensino secundário, foi descobrir que os livros e os filmes possibilitavam diversos níveis de leitura, não podendo ser apernas considerados no que mais facilmente aparentavam. O desafio estava em conseguir lê-los ou vê-los para além do seu nível de apreciação mais básico.
Se nos quiséssemos cingir a essa abordagem mais superficial, este livro de Gonçalo M. Tavares resumir-se-ia facilmente ao encontro de um foragido, Marius, com Hanna, uma miúda com trissomia 21, que anda à procura do pai. Inicia-se assim uma viagem pela Alemanha ao encontro de pessoas com estranhos hábitos: o que colava cartazes políticos em ruas pouco frequentadas, o que acumulava os mais anódinos objetos a pretexto de ter uma loja de antiguidades, os estalajadeiros que puseram nomes de campos de concentração aos quartos do seu estabelecimento, aquele que escondia textos impressivos  sob uma linha igual a tantas outras, ou quem anda a tirar fotografias a pessoas com os problemas de Hanna. No final, Marius separa-se involuntariamente da miúda, quando uma manifestação política os submerge e permite a ele vir à sua superfície como se doravante tudo pudesse iniciar-se a partir daquele momento de rearranque em que voltava a sentir-se livre de qualquer compromisso.
Se têm existido tentativas de vários escritores lusos em ganharem balanço para a internacionalização, mediante o recurso a ambientes e personagens sem nada a ver com a nossa lusitanidade, Gonçalo M. Tavares é o que alcança mais facilmente a dimensão universalista, que explica a sua progressiva divulgação noutros países. Depois de Saramago, nenhum outro escritor consegue tão facilmente colar as suas histórias a um questionamento moral, que aproxima o romance do discurso filosófico. Em cada um dos personagens, que se cruzam com Marius e com Hanna, há todo um conjunto de metáforas, que ficam sugeridas, levando o leitor a concluir tratar-se de bem mais do que um simples romance.
Conseguimos ver então nos coladores de cartazes os que fazem o trabalho de formiga para acelerar os processos de transformação das sociedades. Ou os que se sentem prisioneiros da História em nome do dever da memória aos que já não estão ou de tudo quanto deles se acumulou sem juízo crítico. No mistificador, que lê os verdadeiros sentidos dos textos pela lupa de um microscópio, há todo um jornalismo orientado para reduzir a realidade à monotonia das linhas retas, quando afinal nelas se escondem as complexidades do que a enriquecem.
Podemo-nos até interrogar quanto à existência ou não de Hanna: não seria ela a metáfora de tudo quanto mantém cada um de nós presos aos compromissos pessoais, mesmo quando crescem os movimentos de revolta e a eles nos conformamos com a adesão passiva, em vez de assumirmos o papel ativo de os tornar mais forte?
O tal colega da minha filha encontraria neste romance um campo muito fértil de interpretações, das quais muitas escapariam decerto à intenção inicial do autor. Mas é isso mesmo que torna fascinante a Literatura: o desapossamento que fazemos dos textos criados por outrem e que, filtrados pelos seus leitores, deixam definitivamente de pertencer a quem os criou, passando a ser de todos quantos com eles se enriquecem...

Sem comentários: