terça-feira, junho 14, 2016

(AV) “Autorretrato” de Aurélia de Sousa (1900)

O que alberga o olhar desta mulher? Será que nos olha a nós, que a olhamos, ou vislumbra algo à sua frente e que não pode ser senão ela mesma, essa Aurélia, que tem 34 anos e passa episodicamente pela casa familiar à beira do Douro, enquanto se prepara para mais uma das suas viagens, que nos últimos dois anos a têm levado a Bruxelas, a Antuérpia, a Berlim, a Roma, a Florença ou a Veneza?
Não é um autorretrato complacente, mas quem a conhece sabe-a tão austera, quanto resoluta, ou não tivesse chegado às escolas de Belas Artes muito tarde, quando a maioria dos seus parceiros de ofício já delas tinham saído, ou já aí pontificavam como professores. Mas Aurélia possuía o estigma de ser mulher e ainda não era fácil por essa altura conciliar essa condição com a de artista. Como Berthe Morisot, desaparecida cinco anos atrás, sempre sentira, ou Camille Claudel padecia por esta mesma altura.
Porque dependerá quase exclusivamente do mecenato da família, Aurélia pintará muitos motivos florais por serem os que mais facilmente se vendiam. E são eles que maior sucesso encontram nas muitas exposições coletivas a que confiará as suas obras, desejosa de chegar a uma emancipação económica, que nunca alcançará. Muito embora não se conheçam motivos de mal-estar dessa dependência. Do Chile, onde ela nascera, o pai trouxera sólida fortuna, que lhe permitira comprar a Quinta à beira do rio. Os muitos anos de emigração latino-americana tinham-lhe sido deveras proveitosos. Pena que tivesse usufruído tão pouco, porque cinco anos depois de regressar à região natal, morrera deixando órfãos os sete filhos, de cuja ordem era Aurélia a do meio, ou seja a quarta por ordem de nascimento.
Esse meio, que é também o da simetria, está presente no quadro, através de uma linha vertical, que o acompanha de cima abaixo. Do risco no cabelo, prolonga-se no nariz e no queixo,  e conclui-se no medalhão e, sobretudo, no motivo geométrico do vestido e do casaco.
Esta característica na conceção do autorretrato - tema que rivalizará com os tais motivos florais no conjunto da sua obra - revela-nos a sua personalidade solitária, porque, embora se tenha também representado na figura de Maria Madalena, Aurélia nunca casará, convertendo-se na emblemática tia dos muitos sobrinhos, que cirandarão à sua volta e a quem trata como se de filhos fossem.
Há quem enfatize a modernidade deste quadro, encontrando-se nas sombras do rosto algo que iremos ver depois em Bacon ou na própria Paula Rego. Mas deixando-nos simplesmente situar perante este olhar, somos inevitavelmente cativados pelo mistério profundo, que nos pode sugerir muitas possibilidades, mas se encerra na inalcançabilidade do que efetivamente vê.

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