quarta-feira, junho 01, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Noites de Cocaína» de J.G. Ballard (VI)

Vivemos num tipo de sociedade, que tende a transformarmo-nos em algo, que nunca adivinharíamos poder vir a ser - eis a tese, que Ballard explora neste romance, que tenho aqui vindo a abordar em seis textos, de que fica aqui registado o último.
Charles Prentice chegara à Costa do Sol com um único objetivo: inocentar o irmão mais novo do hediondo crime, de que se confessou culpado e em que cinco pessoas terão morrido carbonizadas no incêndio de uma mansão. No entanto, à medida que se vai deixando seduzir pelo ambiente glamoroso dos aldeamentos onde se veio sedentarizar, esquece o objetivo inicial, nem sequer visitando Frank na cadeia onde ele espera o julgamento. E, quando Bobby Crawford, que ele tem a certeza de ter sido o verdadeiro autor do crime, o convida para gestor de um aldeamento, qualquer escrúpulo deixa de fazer para ele sentido. Pior ainda passa a ver como ameaça o inspetor da polícia, que teria condições de ajudá-lo a apurar a verdade: “Cabrera, no entanto, deixara-me nervoso, como se tivesse lido o guião secreto que Crawford escrevera e soubesse do papel que me fora atribuído. Tentei acalmar-me olhando para o mar, para a extensa linha de vagas cristadas de espuma que vinha de África. Tinha deliberadamente esquecido o Frank, empurrando-o, e à sua ridícula confissão, para um corredor lateral do meu espírito. Naquela nova e mais revigorante atmosfera, sentia-me livre dos constrangimentos que me tinham pesado desde a infância, e preparado para voltar a enfrentar-me a mim mesmo, sem medo.(pág. 261)
Paula, a médica que fora episódica amante de Frank e acompanhara Bobby Crawford nos seus projetos durante algum tempo, também não se cansa na tentativa de alertar Charles para os perigos em que incorre:
Quando vieste para cá, eras o homme moyen sensuel, cheio de recalcamentos a respeito da tua mãe e pequenas culpas em relação às prostitutas adolescentes que andaste a fornicar em Banguecoque. Agora não tens a mais pequena preocupação moral. És o braço direito do czar do crime local e nem sequer te apercebes disso.” (pág. 276)
Sanger, o psiquiatra de quem Charles se tornou vizinho em Costasol, ainda é mais explicito na caracterização da teia em que ele se deixou enlear:
“O homem é um perigo para todos os que o conhecem. Anda pela costa, de aldeamento em aldeamento, com a sua raqueta de ténis e a sua mensagem de esperança, mas a visão dele é tão tóxica como o veneno de uma cobra. Toda esta infindável actividade, estes festivais de arte e conselhos municipais são uma espécie de parkinsonimo social. A chamada renascença que todos cantam tem um preço. O Crawford é como a L-Dopa. Os doentes catalépticos despertam e começam a dançar. Choram, riem, falam e parecem ter recuperado os seus antigos eus. Mas a dosagem tem de ser constantemente aumentada, até a um ponto em que mata. Nós sabemos que medicação o Crawford receita. O que aqui temos é uma economia social baseada no tráfico de drogas, roubo, pornografia e prostituição... de alto a baixo um condomínio de crime.”  (pág. 287)
É sem surpresa que o romance irá concluir-se com a queda definitiva de Charles no abismo, indo juntar-se ao irmão no mesmo cárcere.

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