sábado, junho 11, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: A Lua Cheia de Natália

Na terceira parte do livro de Fernando Dacosta dedicado à impressionante personalidade de Natália Correia  - «O Botequim da Liberdade» - ele aprofunda o fascínio, que lhe mereceu o casal formado por Sá Carneiro e Snu Abecassis, tanto mais ter sido ela a apadrinhar essa ligação.
Se esse fundador do PSD nunca me mereceu qualquer simpatia - bem pelo contrário! - não deixo de lhe reconhecer na tragédia a que ficou associado o carácter mítico tão do agrado da escritora.
Um amor assolapado, que acaba envolto em chamas, tinha todos os ingredientes para se juntar às lendas associadas a Pedro e Inês, ou mesmo às tragédias de outros enlaces intemporais como os de Romeu e Julieta.
Se houve alguém que compreendeu muito bem a opção de John Ford, quando defendeu a primazia da lenda sobre a realidade, foi Natália Correia.
Pouco importa agora se Sá Carneiro correspondia, de facto ao modelo de político social-democrata ao estilo nórdico, aparentemente perfilhado por Snu. Não podemos mais do que conjeturar se ela se sentiria, efetivamente, feliz nessa relação com um homem cujos tiques totalitários estavam à vista com a desesperada tentativa de subverter as conquistas de abril através da aspiração a ter uma Assembleia, um Governo e um Presidente todos alinhados com o seu ideário direitista. Mas para Natália o que interessava era a vertente dos afetos: essas dificuldades suscitadas pela condenação da Igreja por um tipo de relação a contrario dos seus cânones ou pela escusa da legítima em aceitar o divórcio. Conquanto a realidade se ajustasse a uma boa ficção, passível de ser traduzida num poema, numa peça de teatro ou num romance, era o quanto bastava a Natália para excluir todas as demais leituras possíveis.
No livro Fernando Dacosta conta outro exemplo desse tipo de conduta: ouvindo de um historiador a hipótese de Camões ter vivido um amor, igualmente, assolapado, por um pupilo de que fora precetor - D. António de Noronha - e a quem, quando lhe soube da morte precoce, dedicara o poema «Alma minha gentil que te partiste», logo viu nessa lenda sobre a homossexualidade de Camões uma oportunidade de ouro para mais um projeto literário, que ficaria por cumprir. Mesmo que, à sua volta no «Botequim», a maioria dos seus convivas torcesse o nariz a uma hipótese tão pouco fundamentada.
Perante essa tendência para se colocar à margem dos estereótipos, não admira, que a passagem pela vida política lhe tivesse suscitado inevitáveis engulhos. O PSD, a cujo grupo parlamentar pertencera, moveu-lhe dois processos disciplinares e nunca mais a convidou para as suas listas. O PS ainda andou a planear tê-la nas suas hostes, mas não houve coragem bastante para formalizar o convite a quem se revelava tão avessa à disciplina de voto e à arregimentação a posições de princípio, que ela seria a primeira a questionar.
As consequências foram-lhe ingratas: sem outros recursos económicos, que não os dos seus escassos direitos de autor, ela morreu quase indigente.

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