quinta-feira, junho 02, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: A ambiguidade de apreciar Luchini e detestar Céline

Nos idos anos setenta, quando as estadias em França significavam a compra de livros de bolso como pãezinhos, um dos títulos, que adquiri foi a «Voyage au bout de la nuit» de Céline. Ainda pouco sabia do autor, mas o entusiasmo de alguns retardatários do movimento de maio de 68 justificava o meu interesse.
No entanto nunca cheguei a pegar no livro e fui-o remetendo cada vez mais para as catacumbas da minha biblioteca, sobretudo a partir do momento em que comecei a aprofundar o tipo de crápula, que ele fora. Por muito brilhante que um escritor seja (e o Baptista Bastos assim o considera, muito embora também não lhe poupe nos adjetivos quanto à personalidade), nunca o talento me servirá de desculpa para apagar os seus comportamentos criminosos contra os oprimidos. Ora Céline foi um colaboracionista dos nazis durante a Ocupação e publicou panfletos abjetos contra os judeus em claros apelos aos crimes de que eles foram vítimas. Acaso não tivesse escapado para a Dinamarca, também teria conhecido o destino de Brasillach, sumariamente passado pelas armas na altura da Libertação.
É por isso que vejo com a maior das antipatias os esforços de alguma intelectualidade francesa em recuperar os que se portaram ignominiosamente nesse período da História: o citado Céline, mas também Drieu de la Rochelle, Paul Morand, Lucien Rebatet ou Sacha Guitry, entre muitos outros.
Vem isto a propósito de, a pretexto de me saber apreciador de Fabrice Luchini como ator, a minha irmã me ter oferecido recentemente o seu livro de memórias «Comédie Française». A exemplo de outra atriz pouco valorizada entre nós - Sabine Azéma - Luchini é daqueles atores franceses de quem lhe vejo os filmes mesmo sem saber do que tratam. Porque foi inesquecível o gozo que me proporcionou ao vê-lo a digladiar-se com Lambert Wilson na paisagem fabulosa da ilha de Ré para saber qual dos dois iria fazer o papel de Misantropo na peça homónima de Molière. Ou o burguês que ganharia particular empatia com as criadas espanholas, que viviam no sótão do seu prédio. Ou o padeiro literato, que se apaixona por uma versão atualizada da Madame Bovary.
Foram tantos os papéis de Luchini, que me agradaram, que quase me qualifico como um luchinófilo.
E, no entanto, ei-lo a dedicar várias partes do seu livro ao seu fervor por Céline, com cujos textos cria espetáculos muito concorridos de uma espécie de stand up poetry e onde a expressão rigorosa da língua francesa constitui o principal atrativo. Como é possível conciliar a contradição entre alguém que faz do palco a expressão de um enorme talento e o gosto literário por um tal crápula, que igualmente reconhece como eticamente desprezível?
Eis um desafio intelectual, que me anda a ocupar por estes dias...


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