sexta-feira, setembro 02, 2005

ROBERT GUÉDIGUIAN: «MON PÈRE EST INGÉNIEUR»

Duas ideologias destinadas a salvar os homens: o catolicismo e o comunismo! Ambos em crise perante uma realidade insofismável: os seus crentes têm mais os vícios do que as virtudes da sua condição humana e o resultado pode redundar numa terrível decepção.
Por isso, à frente dos massacres no Ruanda estiveram padres e freiras da Igreja Católica, que se esqueceram de pregar o amor entre os homens, incendiando os espíritos com palavras de ódio.
E os regimes do Leste Europeu acabaram por caricaturar uma ideologia, que deveria significar mais liberdade e justiça para todos.
É este o tema do filme, que Robert Guédiguian estreou em 2004, interpretado por dois dos seus mais constantes cúmplices ao longo da sua já respeitável filmografia: Ariane Ascaride e J.P. Darroussin.
Começa pela chegada de José e de Maria a Belém. Escorraçados da sua própria terra, vão procurar ali o abrigo para o nascimento da criança, que ainda cresce no ventre dela. Será graças à ajuda de outros pobres, tão desvalidos, quanto eles, que eles se prepararão para o momento decisivo das suas vidas…
Essa é a história, que a mãe de Natascha lhe lê, repetindo um ritual de infância. Mas, a pediatra quarentona está totalmente ausente de si mesma. Apática, incapaz de reconhecer os outros, de se alimentar ou de se movimentar.
Um estado de ausência que Jérémie, acabado de chegar, considera radicado numa experiência dolorosa, suficiente para ela ter desejado perder-se de si mesma.
Para ajudar aquela que fora o grande amor da sua adolescência, Jérémie abandona a sua bem sucedida carreira ao serviço do Ministério da Saúde, que lhe granjeava sucesso mediático, para se instalar ali, em Marselha, a dar os passos por ela percorridos em anos mais recentes.
Recordando-se de quando, trinta anos atrás, ambos frequentavam o curso de russo e ele era incapaz de dizer a frase «O meu pai é engenheiro». E quando o ideal comunista os animava…
Instalado no apartamento dela, Jérémie descobre-lhe a disponibilidade para acorrer às solicitações dos seus pacientes imigrados ou para lhes ajudar os filhos nos seus primeiros passos na língua francesa.
Quase por acaso, Jérémie vai-se substituindo à amiga nessa missão. Retomando os ideais de solidariedade com os mais desmunidos.
Pela vizinha de Natascha, que se tornará sua episódica amante, Jérémie identifica-se com os seus esforços em impedir a expulsão dos vizinhos. E compreende quanto ela foi feliz nessa militância assente em acções práticas e de resultados comprovados.
Ele, ao invés, sentira-se sempre infeliz ao comprovar quanto os homens são capazes de fazer muito pior do que seria possível imaginar…
Se a carreira, que o levara para longe, fora de aparente sucesso, Natascha terá parecido mais realizada naquela vivência quotidiana junto de gente pobre, em que tentava aliar a inteligência e o amor, como meio para alcançar um mundo melhor…
Mas irá ser revelador o drama de Rachid e de Mylène. Aos catorze anos amam-se e tudo fazem para se unirem de uma forma indissolúvel. A exemplo dos amantes de Verona, cujo desiderato irão imitar.
Porque, apesar de grávida, Mylène será barbaramente agredida pelo Pai, esse Vadino, que se esquece das ideias de esquerda para assumir um racismo inqualificável.
Porque, apesar das suas origens imigrantes, ele sente-se superior a uma qualquer família árabe…
Por querer ajudar os adolescentes, que lhe evocam a singeleza dos seus próprios amores com Jérémie, Natascha será sordidamente molestada por Vadino. O trauma, que lhe terá causado essa vontade de alheamento, que nem os electro-choques dissipam.
Depois de entregar ao agressor os corpos rendidos e vazios de Rachid e de Mylène, endossando-lhe a total responsabilidade pelos seus actos ignóbeis, Jérémie leva Natascha para casa, disposto a continuar a missão de a devolver à vida.
Pensando neles dois e esquecendo a militância cuja improbabilidade de sucesso, acabou de ser acentuada nesse mergulho no real...

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