sábado, setembro 17, 2005

CORNUCÓPIA: «SANGUE NO PESCOÇO DO GATO»

Há toda uma vida preenchida por estereótipos, uma linguagem recheada de lugares comuns. Um gigolo, que vende ternura a mulheres mais velhas, uma viúva de soldado a contas com irrisória pensão, um empregado humilhado capaz de se vir a transformar em patrão humilhador, a burguesa a viver dos seus rendimentos, uma modelo a preferir o prazer solitário ao propiciado pelos muitos homens da sua vida, a rapariga apanhada a roubar e a quem o pai açoitava em pequena, o velho pederasta sossegado na inquietação da sua diferença, o polícia cuja mãe era uma cabra, o soldado boçal pronto a assediar qualquer rapariga com que se cruza, etc, etc.
É com toda essa gente, que se cruza uma enviada das estrelas, disposta a indagar sobre o significado da civilização humana. Decorando-lhe as palavras, mesmo sem se aperceber do correspondente sentido. Até devolver a esses personagens o eco das suas palavras, neutralizando-os com dentadas de vampiro.
Numa altura em que o mais recente filme de George Romero sobre zombies está aí em Lisboa a explicitar uma crítica inteligente ao capitalismo em época de globalização, a peça de Fassbinder agora estreada na Cornucópia é reveladora dos limites de um tipo de sociedade democrática em que o direito dos seus cidadãos à liberdade se vê condicionado por preconceitos, por frustrações, por desencantos, por pura maldade.
Homens e mulheres diferenciam-se nos seus direitos e deveres numa sociedade, que acautela o poder da força dos primeiros contra a vontade emancipadora das segundas.
Para ilustrar o texto de Fassbinder, Luís Miguel Cintra pôde contar com a colaboração de um excelente naipe de actores, a começar pelo veterano Lima Barreto e pelos experientes Rita Durão, Ricardo Aibéo, Rita Blanco e Luísa Cruz até actores mais novos, mas cuja inserção na companhia traz uma óbvia diversidade de soluções.
Pelo facto de ainda agora ter estreado, a peça padece no seu início de algumas fragilidades interpretativas. Mas quando ganha velocidade de cruzeiro, volta-se a sentir a consistência de uma encenação e de uma cenografia, que sustentam a riqueza polissémica do texto…

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