segunda-feira, setembro 19, 2005

JOSEPH CONRAD: «A LAGUNA» (DO LIVRO «HISTÓRIAS INQUIETAS»)

Eis um conto ao estilo do Conrad, que foi tripulante de navios mercantes nos cenários exóticos das costas e asiáticas.
A história parte da perspectiva de um branco - porventura o único por aquelas paragens - quando este ordena à sua tripulação a escala na concessão do seu amigo Arbat.
Ao fundo da avenida rectilínea aberta na floresta pela cintilação do rio, o sol aparecia, sem nuvens e encandeante, pousado sobre a água que brilhava como uma folha de metal. A floresta sombria e triste erguia-se de ambos os lados do largo rio numa imobilidade silenciosa. Nas lamas da margem e por baixo das majestosas árvores de grande porte cresciam as palmeiras nipa, sem tronco e com as enormes e pesadas folhas suspensas sobre o remoinhar das águas pardacentas. No ar parado, as árvores, as folhas, os ramos, as lianas, as pétalas das flores recém-desabrochadas pareciam ter sido encantadas e fixadas numa imobilidade perfeita e definitiva. No rio também nada mexia, a não ser os oito remos que regularmente subiam relampejando para mer­gulhar na água ao mesmo tempo como um só; e o timoneiro descrevia uma curva luminosa por cima da cabeça com a pagaia antes de a mergulhar regularmente à direita e à esquerda.
O branco, de costas para o sol, percorria com o olhar a vasta extensão deserta do estuário. Durante as últimas três milhas do seu curso, o rio, até aí hesitante e sinuoso, corre a direito para o mar, como que corre atraído irresistivelmente pela liberdade dum horizonte a leste — para o leste que abriga simultaneamente a luz e as trevas. A retaguarda do barco, o grito repentino duma ave, um grito não harmónico e em decrescendo, deslizou pela superfície polida das águas e perdeu-se, antes de chegar à outra margem, a um silêncio de morte em que tudo estava mergulhado.
Compreendia-se esse ambiente soturno: na cabana da concessão está uma mulher a morrer. É Diemelen, a mulher que Arbat muito amara. Apesar de, pela sua condição servil, ele não poder aspirar a tal objecto de desejo.
Agora, enquanto aguardam pelo último suspiro dela, Arbat conta como decidira fugir com ela, ajudado pelo irmão, que nutria por ele um profundo amor fraternal:
O meu amor era tão grande que pensava que me poderia guiar até um país onde não haveria morte se conseguisse escapar à cólera de Inchi Midah e à espada do Rajá. Remávamos com toda a força, respirando por entre os dentes cerrados. As pás dos remos mergulhavam profun­damente na água plana. Saímos do rio; vogámos em canais claros entre baixios. Contornámos a costa negra; bordejámos a praia arenosa onde o mar diz segredos à terra; e a areia branca cintilava à nossa passagem, tão rápido o nosso barco corria sobre a água. Não falávamos. Eu disse só uma vez: — «Dorme, Diamelen, pois dentro de pouco tempo vais precisar de todas as tuas forças». — Ouvi a doçura da sua voz mas não voltei a cabeça uma só vez. O sol nasceu e continuámos a remar. O suor pingava-nos da cara como a chuva das nuvens. Fugíamos envoltos em luz e calor. Não olhei para trás uma vez sequer mas sabia que os olhos do meu irmão, atrás de mim, olhavam fixamente em frente, pois o barco avançava tão a direito como o dardo dum homem da floresta quando sai do sutripitan. Não havia melhor remador, melhor timoneiro que o meu irmão. Tínhamos ganho muitas corridas os dois com aquela canoa. Mas nunca usáramos as nossas forças como naquela altura — naquela altura que foi a última em que remámos juntos! Não havia guerreiro mais valente nem mais forte que o meu irmão. Não podia desperdiçar forças para me voltar e olhar para ele, mas ouvia a sua respiração tornar-se cada vez mais ruidosa. No entanto ele não falava. O sol estava alto. O calor colava-se-nos aos rins como uma língua de fogo. As costelas pareciam ir rebentar-se-nos e eu já não conseguia encher o peito de ar. E então senti que me era necessário gritar com o meu último fôlego: — «Descansemos...»— «Está bem» — respondeu ele; e a sua voz era firme. Ele era forte. Ele era valente. Ele não conhecia o medo nem a fadiga... o meu irmão!
Um murmúrio forte e doce, um longo e débil murmúrio; o murmúrio de folhas, de ramagens agitadas, correu das profundezas emaranhadas da floresta, correu sobre a planura da laguna marulhou subitamente contra as estacas lodosas. Um sopro de ar quente veio aflorar os rostos dos dois homens e passou com um ruído lúgubre— um sopro profundo e curto como um suspiro inquieto do sonho da terra. Arsat retomou a sua narrativa em voz baixa e monocórdica:
— Varámos a canoa na praia duma pequena baía perto duma língua de terra que parecia barrar-nos o caminho; um extenso promontório coberto de árvores que penetra profundamente no mar. O meu irmão conhecia aquele lugar. Do outro lado do cabo, desagua um rio e existe um caminho estreito que vai dum lado ao outro através da selva. Fizemos uma fogueira e cozemos arroz. Depois deitámo-nos na areia macia, à sombra da canoa, para dormirmos enquanto ela vigiava. E mal tinha fechado os olhos ouvi-a soltar um grito de alarme. Erguemo-nos dum salto. O sol tinha já feito três quartos do seu curso e, na abertura da baía, avistámos um parau tripulado por muitos homens. Reconhecemo-lo imediatamente; era um parau do Rajá. Eles estavam a esquadrinhar a costa e viram-nos. Fizeram soar o gong e rumaram para dentro da baía. Senti o coração faltar-me. Dicmelen sentou-se na areia e cobriu o rosto. Não tínhamos fuga possível por mar. O meu irmão riu-se. Tinha a espingarda que tu lhe tinhas oferecido antes de partires, mas só uma mão-cheia de pólvora. E disse rapidamente: — «Leva-a pelo caminho. Eu aguento-os pois eles não têm armas de fogo e desembarcar contra um homem armado é morte certa para alguns. Foge com ela. Do outro lado daquele bosque vive um pescador... com uma canoa. Logo que tenha gasto os cartuchos todos vou atrás de vós. Tu sabes como corro e antes de eles terem tido tempo de chegar ao outro lado já nós teremos partido. Vou aguentar o mais que puder pois ela é só uma mulher... que não sabe lutar nem correr mas tem o teu coração nas suas mãos frágeis». — Agachou-se atrás da canoa. O parau aproximava-se. Nós os dois corremos e já íamos no caminho quando ouvi tiros.
O irmão de Arbat morreria nesse combate para possibilitar a fuga dos amantes malditos. Tão malditos, que a doença estava em vias de levar consigo a frágil Diemelen.
Tendo perdido quem muito amara, Arbat planeia um último gesto: o de vingar o irmão, procurando e matando o poderoso e injusto rajá:

O sol iluminava-lhe o rosto, aparecendo já a rasar o topo das árvores, na sua ascensão constante. A brisa tornou-se fria; a superfície da laguna brilhava com a luminosidade. A floresta emergiu das sombras da manhã, tornou-se distinta como se se tivesse aproximado para mais perto — e estacado numa grande agitação de folhas e de ramagens. Na luminosidade impiedosa, o segredar da vida inconsciente elevou-se, envolvendo com uma ressonância incompreensível as trevas mudas da dor humana. Os olhos de Arsat erravam lentamente e depois fixaram-se no sol nascente.
- Não vejo nada — disse para si a meia voz.
- Não há nada — disse o branco, andando para a borda da plataforma e fazendo um aceno com a mão para o barco. Um grito veio de lá, através da laguna, e o sampan começou a deslizar em direcção à morada do amigo dos fantasmas.
- Se queres vir comigo, posso esperar por ti a manhã toda — disse o branco olhando para longe, para a água.
- Não, Tuan — disse docemente Arsat. — Não comerei nem dormirei nesta casa, mas primeiro tenho de ver o meu caminho. Agora não vejo nada — não vejo nada! Não há luz nem paz no mundo; mas há morte — morte para muitos. Nós somos filhos da mesma mãe... e eu deixei-o sozinho no meio dos inimigos; mas agora vou voltar.
Respirou profundamente e acrescentou como num sonho:
- Dentro de pouco tempo hei-de ser capaz de ver o suficiente para bater... para bater. Mas ela morreu e… agora ...só há escuridão.
Abriu os braços, deixou-os cair ao longo do corpo e depois ficou imóvel, de cara impassível e olhar petrificado, olhando fixamente para o sol. O branco desceu para a canoa. Os homens, manobrando as varas, correram ao longo do barco, olhando pelo ombro para o começo duma jornada esgotante. À popa, de cabeça coberta por um farrapo branco, o juragan continuou sentado, mal disposto e deixando a pagaia arrastar-se na água. O branco, com os cotovelos apoiados no telhado de folhas da casota pequena seguia com o olhar a esteira cintilante do barco. Antes 'de o sampan ter deixado a laguna e entrado no rio, ergueu os olhos. Arsat não se tinha mexido. Mantinha-se solitário, debaixo da luz penetrante do sol.

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