terça-feira, agosto 16, 2016

(L) «O Meças» de José Rentes de Carvalho

Há muito tempo que não lia um livro de fio a pavio num só dia, mas assim mo impôs a necessidade de estar duas horas e meia à espera de uma Certidão no Registo Civil. E por ser leitura apressada para os meus cânones - não me dando a disponibilidade para ir apossando-me dela com os interregnos, que me permitem ir tomando-lhe o balanço! - sinto-a ambivalente na reação, que me suscitou. Por um lado é inegavelmente bem escrita: há quem encontre afinidades particulares entre Rentes de Carvalho e Camilo (que está longe de ser autor do meu particular agrado!), mas não me atenho a tal paralelismo, bastando-me apreciar a prosa escorreita, o vocabulário rico e as abundantes descrições da paisagem transmontana.
O pior está para mim na escolha dos personagens: o Meças é um psicopata, que  só pode merecer o nosso asco na sua misoginia e na falta de escrúpulos. Parricida (mesmo sem disso ter a noção) não enjeita violar a própria nora quando a apanha a jeito na ausência do filho. Mais tarde só por quase abrupta contenção é que não mata um casal e a respetiva filha, que encontra a piquenicar nas margens do lado propiciado pela barragem recém-construída no curso do rio Sabor.
Não menos ambígua é a escolha do meio-irmão, Adolfo, para servir de narrador de alguns capítulos que nos ajudam a discernir toda a trama, que se vai desbobinando página a página. Com a distância de quem olha para a terra natal com a perspetiva do estrangeirado, é-lhe inevitável a arrogância intelectual, que o leva a sentir-se superior a toda aquela gente moldada pela ignorância e pelo alcoolismo, não escapando até os que, mais letrados - como sucede com a advogada Carla por quem passam os «trâmites» da expropriação das terras alagadas - que ali encalharam e já não sentem forças para dali zarparem.
Para quem em tempos pareceu assumir leituras mais aprofundadas das razões para o subdesenvolvimento das nossas terras do interior transmontano, desiludiu-me a sua atribuição ao mau feitio de uma personalidade sinistra - o sr. Engenheiro, que não passava de um regente agrícola - cuja prole se divide entre, por um lado, as fúrias homicidas e a lubricidade violenta, e essa superioridade de quem já nada tem a ver, nem quer vir a ter com uma região, que deixou de ser a sua.
Pelo meio há personagens com as quais não é possível a empatia: Bolota, o anafado filho do Meças, é um cobarde, que não mostra a mínima vontade para encontrar saída para o labirinto criado pelas circunstâncias. Exemplo dos que nunca verão nas crises a oportunidade para se reinventarem, desagrada-nos na sua medíocre condenação à mais irrevogável indigência.
Isaura poderia ser mais interessante se não fosse essa contagiada falta de coragem para fazer o corte com o beco em que se converteram os seus dias. Por isso deixa-se violar sem oposição e só parte quando um acidente atira o Meças para o hospital e ela rouba-lhe o dinheiro para voltar ao encontro da grande cidade. Mas adivinha-se-lhe futuro não muito diferente do conhecido até ali. Ao partir os pensamentos são fúteis: gasto o pecúlio que lhe possibilita a fuga, logo a «sorte» lhe propiciará o bastante para continuar a sobreviver. Por isso o escritor refere-lhe de passagem a sensação de coincidir a derradeira imagem que conservou do Meças - inconsciente numa maca a ser levado numa ambulância - com a de outro homicídio por si testemunhado.
Se, noutros livros, Rentes de Carvalho me possibilitou um excelente conhecimento das idiossincrasias dos holandeses - assunto a que por razões familiares sou particularmente atento! - não me suscitou idêntico interesse como romancista. O que confirma outra razão de desconfiança: se hoje quem maior entusiasmo mostra com a sua escrita é Francisco José Viegas, é natural que eu desenvolva reação contrária, não sendo por acaso que tudo me afasta dos gostos do secretário de Estado da (in)Cultura de Passos Coelho.

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