sexta-feira, agosto 26, 2016

(L) «Coração Débil» de Fiódor Dostoievski

Superficial como felizmente sou, não me sinto particularmente atraído pelo tema dos abismos da alma humana, um dos temas de eleição do reconhecido escritor russo do século XIX. Nesse sentido prefiro-lhe bem mais o seu contemporâneo Tolstoi, que conseguia dar um testemunho muito vivo do que era a sociedade do seu tempo. Mas «Crime e Castigo» ou «Os Irmãos Karamazov» são projetos de releitura, que poderão fazer-me reequacionar esse preconceito antigo em relação ao seu autor. É que, independentemente, de não ter por resolver quaisquer questões metafísicas (sou ateu, ponto!), nem morais (sou republicano com o que isso significa de valores que definem esse modo de estar, ponto!)),  poderei vir a valorizar a obra de Dostoievski pela estrutura narrativa ou pela construção das frases. O que não é o caso do livro, que agora concluí como aperitivo para essas leituras mais ambiciosas.
Novela da primeira fase criativa do autor, que tinha, então, 27 anos, «Coração Débil» aborda a incapacidade de um ser fraco em controlar e dominar as angústias alimentadas cria dentro de si.
Vassíllii Chumkov começa por surgir-nos como o mais feliz dos homens. Apesar de aleijado, a inteligência promovera-o de servente de uma repartição pública a escriturário e o próprio Diretor, Iulián Mastakóvitch dava-lhe trabalhos complementares para fazer em casa, e com os quais conseguia arredondar o magro ordenado. Mas o que verdadeiramente o leva ao êxtase é a bela Lissenka, que aceitou desposá-lo.
É com essa alegria quase histérica, que Vássia surge ao seu amigo Arkádii Nefedevitch que, apesar de com ele partilhar o local de trabalho e o apartamento, de nada suspeitara.
Durante um dia a alegria contagiante do noivo é também a de Arkáddi, que já imagina os três a viverem numa casa maior numa ambiguidade, que Dostoievski nunca explora, mas que alimenta a malícia dos leitores menos ingénuos.
Que tipo de relação une os dois homens? Como veem tão inocentemente a transformação dessa relação dual num singular «ménage à trois»?
Seria para esse lado mais libertino, que tenderia a ver evoluir a estória, mas isso era esquecer que, entre a minha mente devassa e o puritanismo do escritor russo, vai uma diferença de 180º.
O que interessa a Dostoievski é a impossibilidade de Vássia considerar desculpável o facto de ter um atraso irrecuperável no trabalho, que Mastakóvitch lhe encomendara. E penaliza-se pelo tempo perdido nessas três semanas em que andara a cortejar Lissenka até ela se lhe render.
Apesar de Arkádii lhe argumentar com todas as razões para esse compromisso não assumir tanta relevância, ele perde aceleradamente a razão até se tornar inevitável o internamento no manicómio. E, no entanto, o próprio Mastákovitch comenta que o trabalho em causa nem tinha carácter de urgência…
Podemos, então, conjeturar sobre as razões da queda de Vassíllii no abismo da loucura: corresponderia Lissenka a uma opção antinatural da sua parte, tendo em conta a equívoca relação com Arkádii? Ou a felicidade era para o autor algo de tão assustador, que decidiu fazer a catarse de tal possibilidade através deste frágil coração?

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