segunda-feira, agosto 15, 2005

«OS IDIOTAS», UM CONTO INQUIETO DE JOSEPH CONRAD


Um dos temas mais recorrentes da literatura do século XIX é o das famílias ricas, que conhecem uma irreversível decadência.
É a saga das casas arruinadas devido à loucura dos seus derradeiros descendentes, seja por razões genéticas indefinidas, seja pela consequência de um incesto voluntário ou não.
«A Queda da Casa Usher» de Edgar Allan Poe torna-se numa das referências fundamentais de tal género literário, que tem neste conto de Conrad uma das suas óbvias sequelas.
Jean Pierre Bacadou é o protagonista, conhecido pelo seu pendor republicano. Talvez seja essa a causa da maldição, que penderá sobre a sua cabeça, razão mais que suficiente para olhar com alguma prudência este exercício.
Essa maldição traduzir-se-á em sucessivos filhos deficientes, nenhum deles capaz de assumir a herança da propriedade familiar.
Bem pode ele aceder à vontade da mulher, Suzanne, e abrir as portas de sua casa aos clérigos da região. Não será, assim, que conquistará a deferência divina…
E por isso bebe, insulta os outros, procura violentar a mulher vista como responsável da sua desgraça.
Conrad faz crescer a tensão preparando o inevitável desenlace: este tipo de narrativa acaba, inexoravelmente em tragédia.
Numa noite de tempestade - é o conhecido cânone romântico da identificação do tempo e da paisagem com os estados de alma dos seus personagens, Conrad leva Suzanne a matar o marido, quando este tentava forçá-la a nova gravidez e a escapulir-se desvairada para a beira de uma falésia. Acreditando-se perseguida pelo espectro vingativo do defunto.
Dessa noite restarão esses idiotas, que vagabundeiam pela região, incapazes de assumirem a herança a eles deixada pelo pai.
Ao invés, será o marquês, que lidera os monárquicos dessa região, quem abocanhará essa fortuna, satisfeito por ela não servir de proveito a mais nenhum republicano...


Extractos:


Seguíamos de Treguier para Kervanda. Passávamos a bom trote entre as sebes que encimam os taludes de ambos os lados da estrada e então, no princípio da subida íngreme antes de Ploumar, o cavalo abrandou e pôs-se a passo e o cocheiro saltou da boleia para o chão pesadamente. Fazendo estalar o chicote, um tanto trôpego, caminhava ao lado da carruagem, com uma mão apoiada no estribo e de olhos postos no chão. Ao fim de algum tempo ergueu a cabeça e, apontando com o chicote para o alto da estrada, disse:
— Lá está o idiota!
O sol brilhava com violência sobre os campos ondulados. Grupos de árvores, com os ramos tão elevados no céu como se estivessem em cima de andas, coroavam as elevações do terreno. Os campos, de pequena dimensão e conformados por sebes e muros de pedra que ziguezagueavam ao longo das encostas, formavam manchas rectangulares de verdes e amarelos naturais semelhantes às desajeitadas pinceladas dum quadro náif. E a paisagem era cortada ao meio pelo risco branco duma estrada que se estirava em voltas até muito longe, como um rio de poeira que tivesse descido das montanhas e rastejasse agora a caminho do mar.
— Cá está ele! — voltou a dizer o cocheiro.
No meio da erva alta da berma da estrada e à altura das rodas vimos aparecer uma cara, que ficou para trás à medida que a carruagem avançava lentamente. Era uma cara imbecil, vermelha e a cabeça bicuda de cabelo cortado rente, parecia existir sem corpo, mergulhando na poeira pelo queixo. O corpo perdia-se nos tufos espessos que cresciam ao longo da valeta. Era uma cara de rapaz. Poderia ter dezasseis anos, a julgar pela altura — talvez menos, talvez mais.

(…)
Suzanne abraçou o seu homem. Ele ficou hirto, depois rodou nos calcanhares e saiu. E então, quando uma soutane preta ensombrava a entrada da casa, não punha objecções; ele mesmo oferecia cidra ao padre. Assistia mansamente à conversa; ia à missa no meio das duas mulheres; cumpriu pela Páscoa o que o padre dizia serem os seus «deveres religiosos». Nessa manhã sentiu-se como um homem que vendeu a alma. Ã tarde envolveu-se à pancada com um vizinho, um velho amigo, por este ter dito que os padres tinham levado a melhor e que agora iam comer o come-padres. Entrou em casa desgrenhado e a sangrar e calhando de olhar para os filhos (mantinham-lhos fora da vista geralmente), pôs-se a
praguejar e blasfemar incoerentemente e a dar murros na mesa. Suzanne chorou.
A senhora Levaille ficou sentada, impassível. Garantiu à filha que — «isso passa» — e, pegando no seu grosso guarda-chuva, foi-se embora, com pressa de saber duma escuna para carregar uns blocos da sua pedreira.
Cerca dum ano depois, nasceu a rapariga. Uma rapariga!
Foram dar a notícia a Jean-Pierre, que andava no campo, e ele sentiu-se tão desanimado que se deixou ficar sentado num muro da vedação até à noite, em vez de ir depressa para casa, tal como lhe tinham pedido. Uma rapariga! Sentiu-se um tanto ludibriado. Podia-se casá-la com um tipo às direitas — não com um que não faça nada, mas com um tipo que tenha algum tino e braços fortes.
Demais a mais, o próximo pode ser rapaz, pensava ele. E é claro, haviam de ser escorreitos.
A sua nova credulidade não conhecia a dúvida. A má sorte fora quebrada. Falou alegremente com a mulher. Também ela estava cheia de esperança. Para este baptizado vieram três padres e a senhora Levaille foi a madrinha, A rapariga saiu idiota como os outros.
Então, em dias de feira, as pessoas viam Jean-Pierre discutir com azedume, quezilento, avaro; e depois embebedava-se com uma gravidade macambúzia; e à noitinha, no regresso a casa, guiava a carroça com uma cara de enterro e num andamento mais próprio para um casamento.
Às vezes insistia com a mulher para que o acompanhasse; e saiam de manhãzinha, aos solavancos, sentados ao lado um do outro e com o porco atrás, amarrado e a grunhir melancolicamente a cada safanão. Estas saídas matinais decorriam em silêncio; mas à noite, no regresso Jean-Pierre, tocado, resmungava maldosamente e berrava com a mulher abominável que não era capaz de parir filhos como os dos outros. Suzanne, segurando-se por causa dos solavancos da carroça, fingia não ouvir. E uma vez, ao atravessarem Píoumar, um obscuro impulso de bêbado levou-o a parar bruscamente mesmo em frente à igreja. A lua nadava entre finas nuvens brancas. As lajes funerárias brilhavam palidamente sob as sombras entrecruzadas das árvores do adro. Até os cães da aldeia dormiam. E só os rouxinóis, acordados, lançavam o estrídulo do seu cantar sobre o silêncio das campas.
— Sabes quem está ali? — disse com voz grossa Jean-Pierre para a mulher.
Com o chicote apontou para a torre — na qual, com o luar, o enorme relógio parecia uma cara branca e sem olhos — e, apesar do cuidado com que quis saltar da carroça, estatelou-se ao lado da roda. Levantou-se e subiu um a um os poucos degrau até ao portão do adro. Com a cara colada às grades chamou lá para dentro com voz pastosa:
— Ei! Anda cá para fora!
— Jean! Anda-te embora! Anda! — suplicou a mulher em voz baixa.
Ele não ligou e parecia ir ficar ali à espera. O canto dos rouxinóis embatia de todos os lados contra as altas paredes da igreja e refluía para entre as cruzes e as lajes cinzentas onde se gravavam palavras de dor e de esperança.
— Eí! Anda cá para fora! — gritava em voz alta Jean-Pierre.
Os rouxinóis calaram-se.
— Não está aí ninguém? — continuou. — Não está lá ninguém. Uma vigarice dos corvos negros. É o que isto é. Não está ninguém em parte nenhuma. Desprezo-te. Allez, hop!
Pôs-se a abanar o portão com toda a força e as barras de ferro ressoaram assustadoramente, com um barulho semelhante ao de correntes arrastadas em degraus de pedra.

Um cão, muito perto da igreja, começou a ladrar. Jean-Pierre cambaleou para trás e ao fim de três tentativas subiu para a carroça. Suzanne mantinha-se muito calma e imóvel.

(…)

Corria com leveza, inconsciente de qualquer esforço do seu corpo. Os rochedos altos e escarpados que na maré alta emergem acima da planície resplandecente da água azulada com torres pontiagudas de igrejas submersas, passaram ao lado dela, correndo como enlouquecidos para
terra. À sua esquerda, ao longe, viu brilhar qualquer coisa: um disco largo de luz, à volta do qual giravam sombras delgadas, como os raios duma roda. Ouviu uma voz chamar por ela:
— Ei! Ei! — e respondeu-lhe com um grito selvagem. Então ele ainda podia chamar! Ele dizia-lhe
que parasse. Nunca!... Entrou pela noite dentro, passou por um grupo de sargaceiros, agrupados à volta duma lanterna e paralisados de medo pelo grito sobrenatural daquela sombra esvoaçante. Os homens apoiavam-se aos ancinhos, com o medo estampado nos olhos. Uma mulher caiu de joelhos e, benzendo-se, pôs-se a rezar em voz alta. Uma rapariguinha com a saia rota coberta de algas viscosas começou a soluçar desesperadamente, arrastando o seu molho de algas para junto do homem que transportava a lanterna. Alguém disse:
— Aquela coisa ia a correr para o mar!
Outra voz exclamou:
—E o mar está a subir!
Olha para os charcos a alargar. Ouça, você, ó mulher, você aí! Ponha-se em pé! — Várias vozes gritaram ao mesmo tempo: — Sim, é melhor irmos embora; essa coisa maldita que vá para o mar! — Começaram a andar, agrupados à roda da luz. De repente um homem lançou uma praga em voz alta. Ele ia lá ver o que era aquilo. Tinha sido uma voz de mulher. Ele ia lá. As mulheres protestaram com gritos estridentes — mas o vulto alto separou-se do grupo e partiu a correr. Um coro de vozes aterroriza das seguiu-lhe no encalço e um insulto trocista, lançado da escuridão, veio-lhes ao encontro. Uma mulher começou a gemer. Um homem velho disse gravemente: — Coisas como aquela devem ser deixadas sozinhas. — Continuaram a andar, mais devagar, arrastando os pés
na areia mole e segredando duns para os outros que Millot não tinha medo de nada, que não tinha religião e um dia havia de acabar mal.
A maré enchente apanhou Suzanne junto à ilhota do Corvo e ela parou ofegante, com os pés na água. Ouviu-lhe o murmúrio e sentiu a carícia fria do mar e, agora mais calma, distinguiu a massa escura e confusa do Corvo dum lado e do outro a longa faixa branca das areias de Molène que, em cada vazante, ficam a descoberto muito acima do fundo seco da Baía de Fougères. Voltou-se e viu
ao longe, contra o fundo estrelado do céu, a torre da igreja de Ploumar, uma pirâmide esguia e alta, lançada para o ar e com a ponta mergulhada no meio das estrelas. Sentiu-se estranhamente calma. Sabia onde estava e começou a lembrar-se de como tinha vindo ali parar — e porquê. Perscrutava a escuridão à sua volta. Estava sozinha. Não estava ali ninguém; não havia ninguém perto, vivo ou morto.
A maré avançava, rastejando em silêncio, lançando longos e impacientes braços de estranhos regatozinhos que corriam para terra entre montículos de areia. Devido à noite, as poças cresciam com uma rapidez misteriosa, enquanto o grande mar, ainda longe, trovejava num ritmo regular, ao longo da linha indistinta do horizonte. Suzanne recuou alguns passos, mas já sem ser capaz de se livrar da água que murmurava ternamente à sua volta e que bruscamente, com um gorgolão rancoroso, quase a fez perder pé. O coração bateu-lhe de medo. Este lugar era demasiado grande e demasiado vazio para morrer. Amanhã eles fariam dela o que quisessem. Mas antes de morrer havia de lhes dizer — aos senhores vestidos de preto — que há coisas que uma mulher não pode suportar! Explicar-lhes-ia como foi que aquilo aconteceu... Patinhou através duma poça e molhou-se até à cintura mas estava demasiado absorta para se importar... Tinha que lhes explicar:
— Ele chegou-se para mim da mesma maneira de sempre e disse assim: — «Julgas que vou deixar as terras àquela gente de Morbihan que nem sequer conheço? »

(…)
De olhos secos, a senhora Levaille estava sentada na erva rala do lado da colina, com as grossas pernas estendidas e os pés calçados com escarpins de lã preta apontando para cima. Os tamancos estavam ao lado, mais longe, o guarda-chuva jazia abandonado como uma arma que um guerreiro vencido tivesse largado da mão. O marquês de Chavannes, a cavalo, de mão enluvada apoiada na coxa, seguiu-lhe os movimentos quando ela se ergueu penosamente a gemer. Pelo carreiro estreito que as carroças das algas tinham aberto, quatro homens traziam para terra o corpo de Suzanne num carro de mão, e outros iam ficando para trás. A senhora Levaille olhava para a procissão.
— Sim, senhor marquês — disse, calma, no seu tom de voz habitual, de mulher velha e sensata — há pessoas com má sorte neste mundo. Eu tinha só uma filha. Só uma! E eles não querem enterrá-la em terra sagrada!
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, que lhe correram pelas faces abaixo. Envolveu-se mais no xaile. O marquês curvou-se ligeiramente na sela e disse:
— É uma tristeza. Você tem toda a minha compreensão.
Eu vou falar com o padre. Ela perdeu o juízo, com toda a certeza, e a queda foi acidental. É o que afirma claramente Millot. Bom dia, minha senhora.
E afastou-se a trote, enquanto pensava: — «Tenho que conseguir que esta pobre mulher fique tutora dos idiotas e a administrar a quinta. É melhor isso do que aparecer aí outro Bacadou, se calhar um republicano vermelho, a corromper-me a comuna».

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