sexta-feira, agosto 26, 2005

LIFE WITHOUT DEAD de FRANK COLE (bis)



O Deserto do Sahara ocupa a maior parte da África do Norte. São oito milhões e meio de quilómetros quadrados entre a Mauritânia, na costa atlântica, e o Mar Vermelho no Sudão, com passagem pelo Mali, pelo Niger e pelo Chade. É árido, inóspito e desolador. Com guerras civis entre as várias tribos do deserto por todo o percurso. As carcaças das vítimas do deserto - de camelos a escorpiões - sucumbiram ao calor, à desidratação ou à violência das suas tempestades. O que levaria, pois, alguém a querer atravessar este inferno na Terra e, ainda por cima, sozinho?
No caso do realizador canadiano Frank Cole, as obsessões com o amor à vida e o medo da morte eram razões suficientes. Em 1989, na sequencia da morte do seu avô, ele decide atravessar o Sahara. Leva com ele garrafas de água, medicamentos, as cinzas do avô e uma câmara Bolex equipada com um temporizador. Ao longo da sua viagem de um ano, ele gravou meticulosamente cada detalhe da sua aventura, permitindo-lhe um lugar no Guiness e na história do cinema documental. O seu filme de 90 minutos, que foi montando ao longo de dez anos, é uma espantoso e brilhante homenagem à busca da eternidade.
Cole tivera o seu primeiro contacto com o deserto ainda em criança, quando o pai, um diplomata canadiano, foi colocado no Norte de África. Essa experiência perdurar-lhe-ia durante toda a vida. Considerando essa paisagem como uma espécie de campo de batalha onde poderia combater e vencer a morte. O seu primeiro filme , The Mountenays, um documentário sobre o confronto da modernidade com a vida nos bosques ainda não parece relacionar-se directamente com o que viria a ser o eixo do seu trabalho futuro.
O segundo filme, A Documentary, é um penoso registo visual sobre a morte da avó. Uma antevisão do que serão as suas obsessões posteriores.
O terceiro filme, A Life, tem algumas das brilhantes qualidades, que impressionarão em Life without dead. Cole vai para o deserto, viajando nele de carro com um companheiro, filmando essa experiência, que tratará depois no seu regresso a Ottawa. O filme não tem som, nem diálogo, nem musica, excepto para os próprios sons do deserto: o de um sapato a cair na areia, o do vento ou o do silêncio nocturno. Na estreia em Ottawa, alguém comentaria, que acabara de ver o trabalho de um verdadeiro génio.
Cole embarca, então, para a primeira parte da sua estadia seguinte no deserto. A da preparação intensa para essa viagem entre Nema, na Mauritânia e a costa sudanesa no Mar Vermelho. Consumido pela crença de que a morte é um cancro temporário passível de ser tratado, ele molda o seu corpo e alma à base de exercícios, vitaminas, uma estrita dieta e solidão.
Tal como confessa nas primeiras sequências de Life without death, ele forçara-se à reclusão, para se tornar num tal solitário que nunca pudesse ser derrotado pela solidão.
Encontrei Cole na altura da sua licenciatura em cinema no Algonquin College. Ao contrário dos outros cineastas em embrião, Cole parecia ser o único a dominar essa expressão artística. Por isso mesmo era visto como um superdotado.
Enquanto se desenvolvia, enquanto cineasta, ele começou a interessar-se por outros temas, que o passariam a conotar com uma certa excentricidade: uma dieta radicalmente austera, uma depuração total de objectos na sua vida (a sua casa quase se limitava o estritamente necessário para que pudesse comer e dormir) e, sobretudo, um interesse significativo pela criogenia e tudo quanto se relacionasse com as vias de superação da morte.
Um dia perguntei-lhe:
- Mas, Frank, se todos vivessem para sempre, aonde arranjaríamos espaço para todos?
- Há imenso espaço entre aqui e Toronto!
Ele viveu como filmou a sua vida. Nada com ele era do tipo meias águas. Quando lhe é proposto um mergulho no Rio Gatineau a norte de Ottawa, Cole logo imagina que esse mergulho envolve a travessia do rio. Numa expedição de compras, ele assume que a sua acompanhante não precisa só de uma ou duas coisas perfeitamente práticas, mas de todo um novo guarda-roupa.
A companheira de Cole durante muitos anos, Sónia Hersig refere a sua obsessão por eliminar qualquer gordura naquilo que comia. O que vai ao encontro do testemunho do seu colega cineasta Dan Sokolowski, que o considerava obcecado com a vida.
A primeira viagem ao deserto com a família e a segunda com um companheiro, que recolheira as imagens que viriam a constituir A Life, apenas atenuaram o seu apetite. Ele sabia que, para compreender a morte do seu avô, e o próprio significado da morte em si, ele considerou a urgência de embarcar para uma viagem eivada de perigo e medo. Ele explicou a Sokolowski; «O deserto é o sítio onde me sinto mais vivo». O seu medo da morte era o seu combustível para a vida.
Em 29 de Novembro de 1989, ele sai de Nema com o primeiro dos oito camelos, que o acompanharão durante um ano. Em que se vai manter vivo contra as agruras do deserto. Filmando a experiência ao longo desse percurso, demonstrando os extremos a que um homem determinado pode chegar.
As imagens mais conhecidas do filme - uma cabeça de camelo em contraluz numa noite estrelada, a chegada da polícia vinda da escuridão para o forçar a interromper essa loucura - a marcha lenta, o sol escaldante, intercaladas com as imagens do avô moribundo culminaram num resultado original.
Tom McSorley, director do Canadian Film Institute, acredita que Cole era uma espécie de pintor da paisagem.
Nesse périplo, Cole descobre bastante sobre si mesmo nos momentos de agonia, na sua pele gretada, nas infecções resultantes de beber água contaminada e, sobretudo, com a sua sede.
Numa certa altura Cole compreende «bastaria ter água para me sentir satisfeito».
Noutras alturas, o seu maior receio é o de ser surpreendido por bandidos durante o sono. Daí que passe a noite alerta, com uma faca sempre à mão. «Quanto mais tempo estou no Sahara, maiores as possibilidades de morrer aqui»
Esse receio quase se vem a tornar realidade: « A morte que mais receio é a que ocorra durante o sono … não estar acordado … para a confrontar … para lutar»
Francis Miquet, um amigo que com ele trabalhou na montagem de Life without Death, acredita que o factor medo era uma característica essencial em Cole, quer enquanto cineasta, quer enquanto pessoa. »Ele ansiava por contactar com o perigo e pela aproximação à morte. Claro que ele não esperava morrer na sua derradeira travessia transariana, mas acredito que compreendia os riscos e estava preparado para morrer pró algo em que acreditava.»
Melanie Scott, Take One, 2002

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