terça-feira, agosto 09, 2005

«KERAIN: UMA RECORDAÇÃO» - UM CONTO DO LIVRO «HISTÓRIAS INQUIETAS» DE JOSEPH CONRAD


Conhecemo-lo naqueles tempos de incerteza em que o facto de cada um ser dono de si e dos seus bens nos bas­tava para vivermos contentes. Nenhum de nós, julgo eu, possui hoje quaisquer bens e ouço dizer que muitos per­deram a vida negligentemente; mas estou certo de que os poucos que ainda vivem, não estarão tão faltos de vista que deixem passar, por entre as brumas da respeitabilidade dos jornais que lêem, as notícias sobre as várias insurreições de nativos no Arquipélago Malaio. O sol cintila entre as linhas desses curtos parágrafos — o sol e o mar resplandecente. Um nome estranho acorda lembranças; as palavras impressas impregnam levemente os fumos dos dias de hoje com o perfume subtil e penetrante das brisas da terra que atravessavam os céus estrelados das noites de outrora; o fogo dum posto de sinalização brilha como uma jóia no alto duma falésia; árvores de grande porte, sentinelas avançadas de florestas imensas, erguem-se, imóveis e vigilantes, sobre a extensão das águas adormecidas; a linha brancas da rebentação ressoa com estrondo numa praia deserta, os recifes cobrem-se de espuma; e, espalhadas na calma do meio-dia, flutuam ilhotas verdes na planura dum mar polido, como uma mão-cheia de esmeraldas num broquel de aço.
O início do conto - um dos primeiros, que Joseph Conrad publicou - endossa-nos, de imediato para a ambiência exótica da outrora designada Insulíndia, aonde o colonialismo europeu ia sobrevivendo, sem jamais conseguir empatia com a cultura aí predominante.
Os brancos comerciavam nessa região, tinham alguns entrepostos, mas viam as tribos locais guerrearem-se e alterarem os mais frágeis equilíbrios, sem entenderem muitas vezes as consequências dessas batalhas na sua presença futura ali.
Kerain é um dos chefes tribais a quem o narrador vendia armamento
Na sala do Conselho rodeava-o a gravidade dos chefes armados e duas longas filas de anciãos trajados de algodão preto, acocorados e com os braços repousando nos joelhos. Sob o telhado de colmo sustentado por colunas polidas, cada uma das quais custara a vida a uma palmeira jovem, o odor das sebes floridas passava em ondas quentes. O sol declinava. No pátio descoberto, os suplicantes avançavam desde o portão já de mãos postas sobre as cabeças inclinadas e curvando-se profundamente sob a luz do sol. À sombra duma grande árvore estavam sentadas raparigas com o regaço coberto de flores. O fumo azul das fogueiras subia, formando uma bruma ténue por cima dos telhados muito inclinados e sustidos a toda a volta pelos pilares de madeira das casas de juncos. Ele pronunciava a justiça à sombra; do alto dum
assento sobreelevado dava as ordens, o conselho, as repreensões. De tempos a tempos, um murmúrio de aprovação crescia e os homens de lança, encostados indolentemente aos pilares a olhar para as raparigas, voltavam vagarosamente as cabeças. A homem algum fora dado o refúgio de tanto respeito, duma tal confiança e dum temor assim. Contudo, por vezes inclinava-se para a frente e parecia ficar à escuta duma discordância longínqua, como se esperasse ouvir uma voz abafada, o som de passos leves; ou soerguer-se-ia bruscamente, como se lhe tivessem tocado familiarmente no ombro.
Na sua simplicidade, Kekain denota uma segurança de si, que irá tornar estranha a sua atitude subsequente. Na noite em que ele abandona os seus fiéis guarda-costas e aparece no navio comandado pelo narrador para pedir ajuda.
Por fim ele falou. É impossível dar o efeito da sua narrativa, pois esta é uma coisa viva que, embora seja hoje para mim apenas uma reminiscência, é a reminiscência duma vida que, como as emoções contidas num sonho, não pode ser transmitida na sua totalidade aos outros. Era necessário ter visto o esplendor natural deste homem, era necessário tê-lo conhecido antes — olhado para ele então. A luz vacilante e triste da pequena cabina; o silêncio que reinava lá fora e que só o lamber da água contra o casco da escuna perturbava; a cara branca de Hollis, de olhos negros e fixos; a cabeça enérgica de Jackson, enterrada em duas enormes mãos e com a longa barba loura derramando-se sobre as cordas da guitarra pousada sobre a mesa; a rigidez de Karain, a intonação da sua voz, tudo isso causava uma impressão inesquecível. Do outro lado da mesa, enfrentava-nos. A sua cabeça escura e o tronco bronzeado erguiam-se, brilhantes e imóveis como de metal fundido. Só os lábios se lhe mexiam, e os olhos luziam, apagavam-se, voltavam a acender-se ou ganhavam uma expressão fixa e triste. A sua expressão provinha directamente do seu coração atormentado. As palavras eram ditas em voz baixa, num murmúrio triste com o da água que corre; por vezes retumbavam alto como um gong de guerra — ou arrastavam-se como caminhantes exaustos — ou lançavam-no para a frente com a vertigem que o medo dá.
Imperfeitamente, isto é o que ele disse: — Foi depois das grandes convulsões que puseram termo à aliança entre os quatro Estados de Wajo. Guerreámo-nos uns contra os outros e os holandeses observavam de longe, à espera de ficarmos exaustos, Então o fumo dos seus navios de guerra mostrou-se à boca dos rios e os seus homens importantes vieram em barcos cheios de soldados falar-nos de protecção e de paz. Nós respondemos com prudência e saber pois as nossas aldeias tinham sido incendiadas, os nossos fortins eram fracos, o povo estava cansado e as armas embotadas. Eles chegaram e depois partiram; houve muitas palavras mas depois de se terem ido embora tudo voltou a ter o mesmo aspecto que antes, só que os barcos deles permaneciam à vista da costa, e passado pouco tempo os comerciantes deles vieram instalar-se junto de nós, sob promessa de que nada lhes aconteceria. O meu irmão era um Rajá e um dos que tinha dado essa promessa. Eu era muito novo na altura e tinha combatido na
guerra. Pata Matara tinha combatido ao meu lado. Tínhamos partilhado a fome, o perigo, o cansaço e a vitória. Os olhos dele viam o perigo que me ameaçava e por duas vezes o meu braço lhe salvou a vida. Estava escrito que teria de ser assim. Ele era meu amigo. E era um grande do Estado, um dos que estavam perto do meu irmão, o Rajá. Falava no Conselho, a sua coragem era grande, governava muitas aldeias à volta do lago que está no meio do nosso país como o coração está no meio do corpo dum homem. Quando a sua espada era transportada para um Kampong antes dele chegar, as donzelas segredavam extasiadas debaixo das árvores de fruta, os ricos homens reuniam-se em conselho, à sombra, e fazia-se um festim com muita alegria e canções. Pata Matara gozava da graça do Rajá e da afeição dos pobres. Gostava da guerra, de caçar o veado e dos encantos das mulheres. Possuía jóias, armas encantadas e a devoção dos seus homens. Era um homem valente; e eu não tinha outro amigo.
Quando um holandês consegue fugir com a prometida noiva de Pata Matara, Karain acede a acompanhá-lo numa expedição de vingança. Que o leva a percorrer todas as ilhas e costas do Sudeste Asiático e da Oceânia.
Mas a dúvida vai-se instalando até ao momento da descoberta dos fugitivos numa roça de Timor Leste. E, no momento decisivo, Karain mata o amigo antes de o ver disparar sobre os foragidos. Na verdade, durante aquela longa busca ele ganhara uma estranha atracção pela rapariga. Que lhe ia aparecendo nos seus sonhos.
A voz de Karain tinha-se vindo a tornar cada vez mais baixa, como se ele tivesse estado a afastar-se de nós, até que as últimas palavras soaram debilmente mas claras, como se gritadas num dia calmo e duma grande distância. Não se mexia. Olhava fixamente um ponto atrás da cabeça imóvel de Hollis, que estava de frente para ele e tão rígido como ele próprio. Jackson tinha-se posto de lado e com o cotovelo apoiado na mesa cobria os olhos com a palma da mão. E eu presenciava tudo isto, surpreendido e emocionado; olhava para aquele homem fiel à sua visão, traído por um sonho, repelido por uma ilusão e que vinha até nós, os frios e duros, os que não acreditam em nada, em busca de auxílio — contra um pensamento. O silêncio era profundo; mas parecia de silenciosos fantasmas, coisas dolorosas, imateriais e mudas, contra cuja presença invisível o firme tiquetaque dos dois cronómetros de bordo que marcavam sem cessar os segundos do Tempo de Greenwich, me pareciam uma protecção e um alívio. Karain estava petrificado; e ao contemplar a sua figura rígida, eu pensava na sua vida de vagabundo, naquela obscura odisseia da vindicta, em todos os homens que erram entre ilusões; pensava nas ilusões tão agitadas como os homens; nas ilusões fiéis e infiéis; nas ilusões que dão alegria, que dão tristeza, que dão dor, que dão paz; nas ilusões invencíveis que podem fazer com que a vida e a morte se revelem serenas, inspiradoras, atrozes ou ignóbeis.
Ouviu-se um murmúrio; aquela voz longínqua parecia vir dum inundo de sonho e espalhar-se sob a luz do candeeiro de cobre. Karain voltou a falar:

Vivi na floresta.
Ela não voltou a aparecer. Nunca mais! Nem uma só vez! Vivia sozinho. Ela tinha esquecido tudo. Estavabem. Eu não a queria; não queria ninguém. Encontrei uma casa abandonada junto a um terreno desbravado e abandonado havia muito. Ninguém se aproximou de mim. Às vezes ouvia ao longe as vozes de pessoas que passavam num caminho. Dormia; descansava; tinha arroz selvagem, água dum regato — e paz. Sentava-me, à noite, à beira da minha pequena fogueira, à frente da cabana. Muitas noites passaram sobre mim.
Então, um dia, ao fim da tarde, estava eu sentado à fogueira depois de ter comido, e comecei a recordar-me das minhas peregrinações, de olhos postos no chão. Ergui a cabeça. Não tinha dado por nenhum som, não ouvira restolhar de passos — mas ergui a cabeça: um homem caminhava para mim através da clareira. Fiquei à espera. Ele chegou-se sem qualquer saudação e acocorou-se junto à fogueira. Então voltou a cara para mim. Era Matara. Fitava-me ferozmente com os seus olhos grandes e profundos. A noite estava fria. A fogueira perdeu subitamente todo o calor e ele olhava-me fixamente. Levantei-me e afastei-me, deixando-o junto ao fogo que não dava calor.
Caminhei toda a noite, todo o dia seguinte e ao fim da tarde fiz um braseiro enorme e sentei-me — à espera dele. Não se aproximou da luz. Ouvia-o entre os arbustos, aqui e ali, a segredar, a segredar.
A exemplo do coronel Kurtz ou do capitão de «Linha de Sombra», os personagens ficam assombrados por uma culpabilidade assassina, que os afunda na irracionalidade.
Neste caso é Hollis, um dos tripulantes, quem arranja um amuleto, que afasta o fantasma de Pata Matara. Que o perseguia Karain para qualquer das direcções por ele tomadas.
Anos depois, já na Europa, o narrador encontra outro elemento dessa tripulação e recordam esse estranho personagem.
Que não mais se apagara das respectivas memórias
!
- Lembras-te de Karain?
- Fiz que sim com a cabeça.
- Olhar para estas armas fez-me pensar nele — continuou, com a cara quase colada ao vidro... e pude ver um outro homem, forte e barbudo, que olhava de lá intensamente, de entre os canos negros e polidos que podem curar tantas ilusões. — Sim, fez-me pensar nele — continuou, lentamente: — Hoje de manhã vi num jornal; há lá guerra outra vez. Ele está metido de certeza. Vai dar que fazer aos caballeros. Bom, que tenha sorte, pobre diabo! Ele era formidável!
Continuámos a andar.


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