quarta-feira, agosto 17, 2005

GLICÍNIA QUARTIM: OITENTA ANOS DE MUITA HISTÓRIA E LUCIDEZ

A actriz conheceu meio mundo nos seus oitenta anos de vida. Sentada em frente à câmara ela vai desfiando as suas memórias sob a forma de muitíssimas histórias, protagonizadas por quem com ela conviveu nas diferentes fases da sua vida.
No MUD, por exemplo conheceu Mário Soares, cuja impressão inicial nela vincada terá sido negativa. Ele parecera-lhe um intrometido, quando afinal era um dos principais dirigentes da organização aonde ela dava os primeiros passos.
António Pedro tê-la-á convencido a ser actriz a tempo inteiro, esquecendo o projecto de avançar nos seus estudos de Agronomia, quando ela estava sob o sortilégio do movimento surrealista, que nunca a deixaria de seduzir. E que não renegaria, mesmo quando Ernesto de Sousa lhe deu o papel principal no filme «Dom Roberto» com um ainda muito jovem Raul Solnado.
De Amélia Rey Colaço receberia, mais tarde, outra grande influência e reconhecimento, ao dizer-lhe estar à sua espera no Nacional o lugar, que lhe caberia por direito. Numa altura em que estava desempregada há um ano, e já desesperava de voltar a pisar os palcos. Ela que aí respirava, toda devotada a vestir a pele das suas personagens.
E, no entanto, ela começara muito cedo em récitas em pequenas salas (da Casa de Arganil ou do Liceu Francês), representando todos os grandes clássicos numa sucessão de papéis, que ia decorando sem ter tempo para os aprofundar.
Existia, na época (anos 40) uma Lisboa pequena em dimensão e em população, tornando-se frequente ela encontrar no eléctrico as pessoas, que a tinham ovacionado na noite anterior.
Mas os seus grandes papéis aparecem nos anos 70, quando se associa à genialidade de Luís Miguel Cintra e de Jorge Silva Melo na Cornucópia. Será aí que os seus grandes papéis dramáticos ganham uma outra espessura, tanto mais que apoiados na cenografia sóbria de Cristina Reis, cuja limitada utilização de objectos em cena, dava ensejo à actriz de se movimentar. Já que a sua interpretação exige sempre um espaço bastante liberto á sua volta. Porque em cena ela não cessa de representar por um momento que seja, mesmo quando as falas são as das demais personagens.
Na sua homenagem a uma cúmplice de múltiplas aventuras, seja na Cornucópia, seja nos Artistas Unidos, Jorge Silva Melo não precisou de grandes meios: o rosto e a voz de Glicínia bastam, apenas alternados com algumas fotografias ilustrativas do seu discurso imparável.
A exemplo de muitos outros sábios da sua idade, ela tem uma História. Que lhe agrada partilhar!
Desse testemunho só nos pode ficar uma pena: a de não irmos a tempo de testemunhar o seu talento, justificadamente passado à reforma...

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