terça-feira, agosto 23, 2005

«O REGRESSO», MAIS UMA HISTÓRIA INQUIETA DE JOSEPH CONRAD (1)

A Inglaterra vitoriana foi palco de uma redefinição dos comportamentos sociais na linha de um puritanismo, que a conotaria com os estereótipos do que de mais retrógrado se concebe a nível de usos e costumes.
Este conto de Conrad enquadra-se nesse ambiente: uma mulher prepara-se para trair o marido, mas arrepende-se no último instante. Preferindo manter as aparências de um estatuto social a viver as tumultuosas emoções, que uma paixão devoradora poderia conceder-lhe.
O escritor só atribui um nome, Alvan, ao marido. Como senão restasse à pecadora esse direito, naquilo que é a demonstração da misoginia normalmente associada a Conrad. Mas ele consegue criar, dentro da limitada dimensão do conto, uma tensão, que passa por uma alternância de tentações até ao desenlace resultante da definitiva prova de ambos em relação àquilo que os poderia unir...

Para Alvan Hervey a chegada a casa naquele dia iria suscitar-lhe uma surpresa, que transformaria por completo a sua perspectiva relativa à vida conjugal:
O comboio urbano proveniente da City irrompeu impetuosamente do buraco negro e parou com um ranger estridente de ferragens na penumbra fuliginosa daquela estação do West-End. As portas laterais abriram-se de par em par e uma multidão de homens apressados desceu. Tinham todos cartola, a cara pálida e saudável, um sobretudo escuro e as botas bem engraxadas; seguravam na mão enluvada o guarda-chuva bem enrolado e os jornais da tarde dobrados à pressa e que pareciam retalhos de fazenda grosseira, de cor esverdeada, rosada ou esbranquiçada. Alvan Hervey desceu juntamente com os outros, de charuto semi-apagado entre os dentes. Uma mulherzinha de vestido preto coçado, correndo com dificuldade pelo cais adiante e carregada de embrulhos, lançou-se bruscamente para dentro dum compartimento de terceira classe e o comboio arrancou. As portas fecharam-se com uma fuzilaria violenta e raivosa de armas de fogo; uma corrente de ar gelado e fumos acres varreu o cais dum lado ao outro e obrigou um velho, envolto num cachecol de lã e de andar pouco seguro, a estacar no meio do atropelo da saída e a tossir violentamente, apoiado à bengala. Ninguém olhou para ele.

(…)


A esperá-lo existe uma carta da mulher a confessar-lhe a iminente fuga para passar a viver com um intelectual, cuja revista ele financiava na sua qualidade de mecenas. Chocado com essa novidade, que o tornaria ridículo no seu círculo de amigos, ele exercita a memória para identificar as razões desse fracasso conjugal. É nessa altura que ela regressa, acobardada com esse salto no escuro, que tivera a tentação de dar:
Parecia-lhe ver-se a declarar-se-lhe... anos antes. Subiam uma ladeira inclinada. Havia grupos de pessoas gozando o sol. As sombras das ramagens repousavam imóveis na relva aparada. Ao longe, algumas manchas minúsculas e coloridas, passando por entre as árvores lembravam borboletas brilhantes que voassem sem mover as asas. Os homens sorriam, amáveis, ou mantinham-se, graves nos seus fatos pretos, ao lado dos grupos de mulheres com toilettes claras de verão, numa evocação dos contos fabulosos de jardins encantados onde flores animadas sorriem para cavaleiros encantados. Em toda esta cena reinava um serenidade sumptuosa, uma excitação leve e vibrante, a perfeita segurança duma ignorância total que fazia nascer nele uma fé transcendente na felicidade de toda a humanidade, um desejo vivo e inquietante de obter só para si, imediatamente, parte daquele esplendor que a sombra de pensamento algum não perturbava. A jovem caminhava a seu lado ao longo dum espaço aberto; não havia ninguém perto e ele, de repente parou, ficou imóvel como que inspirado e falou. Lembrava-se de olhar para os seus olhos puros, para o seu rosto cândido, lembrava-se de relancear rapidamente o olhar em volta para ver se estavam a ser observados e pensar que nada poderia correr mal num mundo tão encantador como aquele, tão puro, tão distinto. No qual sentia orgulho. Ele era um dos criadores, um dos possuidores um dos guardas, um dos arautos dum mundo assim. Queria agarrá-lo solidamente, tirar dele o máximo prazer; e dada a qualidade daquele mundo, a atmosfera sem mancha, a proximidade com o céu da sua escolha, aquela onda de desejo brutal que sentia, pareceu-lhe a mais nobre das aspirações. Reviveu num segundo todos esses momentos e depois todo o patético da derrota se lhe revelou com tal força que a voz se lhe embargou quando disse quase sem pensar:
— Meu Deus! Eu amava-te mesmo!
Ela pareceu ser tocada pela emoção na voz dele. Os lábios tremeram-lhe um pouco e deu um passo hesitante para ele, estendendo as mãos num gesto de imploração, quando percebeu mesmo a tempo, que ele, ao deixar-se absorver pela tragédia da sua vida, se tinha esquecido completamente que ela existia. Estacou e os braços esten­didos caíram. Ele, com os traços do rosto arrepanhados pela amargura dos seus pensamentos, não viu nem o movi­mento nem o gesto dela. Bateu com o pé no chão, desfeiteado, coçou a cabeça e depois explodiu:
— E agora, que vou fazer?
Estava outra vez imóvel. Ela pareceu compreender e caminhou para a porta, com firmeza.
— É muito simples. Vou-me embora — disse em voz alta.
O som da voz dela apanhou-o de surpresa e sobressaltou-se, olhou para ela confundido e perguntou emocionado:
— Tu... Para onde? Para casa dele?
— Não. Sozinha. Adeus.
A maçaneta da porta rodou sob a sua mão tacteante, como se ela estivesse a tentar sair dum lugar escuro.
— Não. Fica! — gritou.


(…)

Durante um par de horas o casal vai viver um jogo de massacre de palavras, de emoções, que ora os precipita para o abismo, ora para a possibilidade de um recomeço:
Atirou-lhe a água para a cara, empregando no gesto toda a brutalidade recalcada do seu despeito, embora pensasse que teria sido perfeitamente desculpável — em quem quer que fosse — atirar-lhe com o copo juntamente com a água. Dominou-se mas ao mesmo tempo estava tão convencido de que nada poderia acabar com o horror daquelas risadas loucas que, quando a primeira sensação de alívio chegou, nem sequer lhe ocorreu duvidar da impressão de ter ficado surdo de repente. Quando a viu endireitar-se na cadeira e acalmada, foi como se tudo, homens, coisas, sensações, estivessem em repouso. Ficou--Ihe grato por isto. Não era capaz de despegar os olhos dela, temendo, embora o não quisesse admitir, que recomeçasse; pois esta experiência, apesar da distância com que tentava vê-la, tinha deixado uma impressão dum terror misterioso. Ela tinha o rosto molhado de lágrimas e de água; os cabelos colavam-se-lhe à testa e à cara; o chapéu estava inclinado para o lado; o véu, ensopado, parecia um pano sórdido. Havia nela uma falta de reserva total, um desprezo por toda a compostura, essa fealdade da verdade que só por uma preocupação constante com as aparências pode ser mantida fora da vida quotidiana. Não sabia por que razão pensou no dia seguinte ao olhar para ela e por que razão este pensamento provocou uma lassidão indizível, um medo de enfrentar a sucessão dos dias. Amanhã! Era tão distante como ontem. Passam-se séculos entre dois nasceres do sol, às vezes. Examinou-lhe as feições como se olha para um país esquecido. Não estavam distorcidas: reconheceu pontos de referência, por assim dizer; mas foi só uma semelhança o que encontrou e não a mulher de ontem — ou aquela era talvez mais que a mulher de ontem? Quem o afirmaria? Era uma coisa nova? Uma nova expressão — ou um novo cambiante da expressão? Ou uma coisa profunda — a revelação duma verdade antiga, duma verdade fundamental escondida — uma certeza malfazeja e inútil? Deu conta que estava a tremer muito, que tinha na mão um copo vazio; que o tempo passava. Sempre a olhar desconfiado para ela, dirigiu-se para a mesa e pousou o copo, sobressaltando-se por vê-lo entrar pela madeira adentro. Tinha falhado a borda da mesa. A surpresa, o leve tilintar deste acidente aborreceram-no. Voltou-se para ela irritado.
— Que é que isto quer dizer? — perguntou-lhe em voz surda.
Ela passou uma mão pela cara e tentou levantar-se.
— Não vai recomeçar com esses disparates. Com franqueza, não sabia que era capaz de se esquecer até esse ponto...
Não tentou dissimular o nojo físico, pois acreditava que o nojo era simplesmente uma reprovação moral de todo o abandono, de tudo quanto pudesse parecer uma cena.
— Garanto-lhe, foi revoltante — continuou. Fixou-a durante um momento: — Completamente degradante — acrescentou com insistência.
Ela ergueu-se bruscamente, como pela acção duma mola e vacilou. Ele deu instintivamente um passo para a frente. Ela agarrou-se às
costas da cadeira e firmou-se. Isto deteve-o e enfrentaram-se com olhares esgazeados, incertos, se bem que regressassem lentamente à realidade das coisas com alívio e estupefacção, como se tivessem acordado nesse instante duma longa noite de sonhos febris.
— Por favor, não comece outra vez — disse apressadamente, ao vê-la descerrar os lábios. — Eu mereço um pouco de consideração. E um comportamento assim tão incrível custa-me. Espero melhores coisas... tenho direito...
Ela apertou as têmperas com as mãos.
— Disparate! — disse ele, cortante. — Está perfeitamente capaz de descer para jantar. Ninguém deve sequer suspeitar; nem as criadas. Ninguém! Ninguém!... Tenho a certeza de que é capaz.

(…)

Não fossem as convenções sociais inerentes à sociedade vitoriana e Alvan penderia para a reconciliação. Mas existe uma sensação de dever masculino, que o empurra para a ruptura:
Estava deslumbrado com a grandeza desta perspectiva; a brutalidade dum instinto prático gritava-lhe que só aquilo que pode ser possuído vale a pena ter. Demorava-se a subir. As luzes do átrio estavam apagadas, e uma chamazinha amarela brilhava lá em baixo. Sentiu um desprezo repentino por si mesmo que lhe deu coragem. Continuou, mas à porta do quarto e já com o braço estendido para a abrir, hesitou. Um lanço de escada abaixo, apareceu a cabeça da rapariga que tinha estado a fechar a porta. O braço caiu-lhe. Pensou: — «Vou esperar até ela se ter ido embora» — e escondeu-se atrás duma portière.
Viu-a subir gradualmente, como se emergisse dum poço. A cada passo a débil chama da vela balançava-se na frente do seu rosto jovem e cansado, e a escuridão do átrio parecia colar-se à sua saia preta, segui-la, subindo como uma maré silenciosa, como se a grande noite do mundo tivesse rompido a discreta barreira das paredes, das portas fechadas, das cortinas corridas. Cobria os degraus, subia pelas paredes como uma onda furiosa; caía sobre os céus azuis, sobre as areias amarelas, sobre as paisagens luminosas e sobre o encanto patético da inocência andrajosa, sobre a fome amável. Engolia o delicioso idílio no barco e a mutilada imortalidade dos baixos-relevos famosos. E a mulher de mármore, composta e cega no seu alto pedestal, parecia desviar esta noite devoradora com um feixe de luzes.


Sem comentários: