sexta-feira, fevereiro 01, 2019

(PtE) Breves purgatórios com o distante rufar dos tambores nazis


Nós que lembramos o Portugal salazarista como espaço de apagada e vil tristeza, só nos podemos espantar com a reação dos refugiados, vindos do centro da Europa para fugirem ao extermínio nazi, e se encantaram com a Figueira da Foz ou com Lisboa, por eles apreciados como autênticos oásis de paz. Só podemos concluir que, se os nossos pais e avós tinham sobejas razões para execrarem um regime, que os mantinha na pobreza e na ignorância, muito pior estava quem vira familiares serem mortos ou levados para incertos destinos, e passara fome, frio e falta de higiene numa fuga caótica, que encontrara, enfim, breve purgatório neste canto atlântico, convertido em porto de partida dos transatlânticos, com carreira regular para o outro lado do oceano.
De «Debaixo do Céu» de Nicholas Oulman é essa a conclusão mais pertinente: durante a Guerra nós estávamos mal, mas outros estavam bem piores. O que não serve de desculpa para a ditadura, por muito que ela logo abusasse dessa mistificação.  Porque, por trás do breve cosmopolitismo, que trouxera gente de ideias bem mais desempoeiradas a animar cafés e ruas da capital, havia quem continuasse a ser preso, torturado, e até mesmo assassinado.
O filme sobre a experiência de uns quantos foragidos do Holocausto, que tiveram Portugal como escala para a efetiva salvação, vale por imagens de arquivo, que desconhecíamos, e por dar voz a quem não tardará a desaparecer na vertigem da História, não sendo de todo conveniente, que se esqueça o seu testemunho. Tanto mais que continuam a existir os que negam as evidências do Holocausto.
De tal período histórico sobressaiu, igualmente, o heroísmo trágico de Jean Moulin, militante comunista francês, que organizou a mais eficaz rede de resistentes contra os ocupantes nazis. Era essa a informação que dele tinha quando, há muitos anos, me atardei junto à sua sepultura no Panteão de Paris, ciente de ser, de entre os que ali se encontravam, um dos que merecia maior admiração. 
Desconhecia-lhe, porém, outra vertente, que até lhe era mais recuada na biografia: em 1930, quando tomou posse como subprefeito em Chateaulin, na Bretanha,  já ia aureolado do talento de competente desenhador e bem sucedido caricaturista (muito embora se resguardasse sob o pseudónimo de Romanin). Conciliando o trabalho político e administrativo com o hobby  artístico, deslocava-se, amiúde, a Camper para participar nas tertúlias ali alimentadas por vários artistas, entre eles Max Jacob, que se tornou seu amigo.  Foi nesse ambiente intelectual estimulante, que o convenceram a ir mais além na ambição criativa, razão porque exploraria a gravura e a cerâmica como complementos aos seus outros trabalhos artísticos.
Ficando na Finisterra francesa até 1933, levaria consigo a imagem do fervor popular nas procissões, que se traduziria na imagem de rostos atormentados em réplicas da Pietá ou da subida para o Calvário. Nessas obras há quem veja o prenúncio dos rostos dos que sofreriam os crimes nazis na década seguinte. Um deles, o fuzilamento do artista, que se convertera em indomável resistente, aconteceria em 1943, dez anos depois de se despedir do sítio onde o seu talento artístico melhor se exprimira.

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