quarta-feira, fevereiro 13, 2019

(DL) A gargalhada que Jacinto Lucas Pires ouviu a Augusto Reis


Há Djalma que, em miúdo, anda a respigar uma lixeira adjacente ao bairro de São João, onde vive com a mãe, e aí descobre um papel com um poema, que definirá a sua vocação. Embora passe anos a trabalhar em empregos mal pagos e humilhantes, para pagar o curso de Direito, é tornar-se poeta, que direciona as leituras dos tempos livres.
O autor dos versos, que lhe haviam despertado tal vontade chama-se Augusto Reis e não imaginava tratar-se de figura grada do Estado Novo. Demoraria, aliás, a perceber o que significara esse regime e qual a importância nele tida pelo admirado escritor. Em torno dele decorre outro dos três eixos por que se divide a história. O romance começa, aliás, com todo o medo nele suscitado pela vitoriosa Revolução de Abril pondo-o, dias a fio, a decidir se fugiria ou não do país. Quando tem a certeza de o virem buscar para partilhar a cadeia com outros vultos da ditadura, foge para Madrid, e depois para o sul de Espanha, aí passando tempo suficiente para que os ardores democráticos se atenuem e até se veja des-saneado da cátedra coimbrã.
Contraditório admirador de Lorca e de Franco - como Djalma lho fará notar muitos anos depois! - Augusto Reis acaba por ser tratado por Jacinto Lucas Pires com ambígua benevolência. Do passado acompanhamos-lhe o nascimento da paixão por Argentina a quem amará incondicionalmente até à morte ou a habilidade para conseguir o que ninguém costumava ter a coragem para fazer: negar a Salazar a vontade de o fazer ministro.
E há outra personagem que, de inicio, parece ter condições para ganhar importância similar à dos outros dois, mas vai-se secundarizando à medida que a narração se desenvolve. Sofia, assim se chama, é uma fracassada realizadora de cinema, a quem o seu documentário mais ambicioso fora alvo de más críticas e desatenção pública. No entanto chegará a entrevistar a mãe de Djalma para um novo projeto e pondera a realização de um outro dedicado a Poetas Direitistas no qual terá pleno cabimento Augusto Reis.
A construção é, pois, a de três histórias em paralelo, que se vão entrecruzando aqui e além, sem que verdadeiramente os três personagens acabem por influir substantivamente no que outros farão doravante. Mesmo Djalma, que será contratado durante algum tempo como secretário de Augusto, acabará por dele se afastar, e da própria poesia, em proveito de uma inesperada aposta na produção teatral.
Ao chegarmos às últimas páginas podemos concluir que Jacinto Lucas Pires olha para as biografias como percursos muito irregulares, ora feitos de esperanças imensas, ora de frustrações dolorosas, com as circunstâncias contextuais a influírem decisivamente no que cada um pode ou não concretizar.

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