sábado, maio 27, 2017

(I) As notas falsas a intrometer na «música» que nos dão

Ando a ouvir o álbum que Riyuchi Sakamoto compôs para a música de um filme inexistente de Andrei Tarkovski e compreendo-lhe bem o fascínio pela obra de um autor cujos filmes nos interpelam, nos dão vontade de a eles regressar. Sobretudo esse «Solaris», que vejo e revejo por constituir um tratado filosófico com inesgotáveis pistas de leitura. Mas o compositor japonês interessa-me, igualmente, pela forma como trabalha os sons e constitui, em si, um método, que deveríamos adotar como regra orientadora de tudo o que fazemos ou pensamos: numa entrevista ele confessa, que vai muitas vezes para o piano, e inicia a interpretação de um tema qualquer logo aqui e além transfigurado por uma nota falsa, depois por outra, e ainda mais outra, a projetarem-no para outras substantivas possibilidades. Trata-se de sair do cânone, das baias de algo que temos como certo e nos sentimos obrigados a respeitar.
Esquivarmo-nos do pensamento convencional, das conclusões que nos querem meter olhos a dentro como axiomas e são falácias cuja validade deixamos de equacionar. Um bom exemplo disso mesmo passa-se com o cinema de Hollywood, que tanto contribuiu para a «mitologia da inocência» responsável pela eleição de Donald Trump. A expressão é utilizada pelo realizador Raoul Peck, de quem ainda se anda a exibir nos ecrãs um documentário sobre o escritor James Baldwin.
Desaparecido há trinta anos, depois de uma vida inteira a expressar a indignação pelo racismo da sociedade em que vivia, Baldwin denunciava precisamente um país onde a imaturidade fazia figura de virtude. Porque tendo tomado John Wayne como protetor-mor, o imaginário coletivo ficou marcado por essa ideia de existir uma divisão social entre os bons e os maus em vez de se situar entre explorados e exploradores.
Não admira que o discurso típico do atual inquilino da Casa Branca esteja pejado de supostas contradições entre os «good guys» e os «bad guys». As cabeças intencionalmente sujeitas a tremenda confusão, por causa das razões justificativas do mal-estar em que se encontram, não pedem mais do que culpados a quem possam odiar em nome das suas frustrações. Sejam eles os refugiados, os emigrantes, os que têm outra cor, outra religião, outro modelo de amar, até mesmo os «madraços» de geografias acusados de quererem viver à custa dos de outras mais à norte.
Podemo-nos revoltar contra quem nos pretenda desqualificar, acusando-nos de gastarmos à tripa forra por só nos interessarem os copos e as mulheres, mas os seus pretensos axiomas, repetidos até à náusea até se converterem em evidências irrefutáveis nos nossos subconscientes, continuarão a vigorar enquanto não multiplicarmos essas tais notas falsas. As que propiciem outra leitura da realidade, iluminando-a com a limpidez exaltante das verdades quase absolutas.

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