quarta-feira, maio 17, 2017

(DIM) «Frenzy», o filme desta semana no Cineclube Gandaia

A propósito do relacionamento de Hitchcock com as mulheres já poderíamos ter abordado o tema nas sessões do Cineclube Gandaia nas semanas anteriores, quando demos com uma Julie Andrews indecentemente enganada pelo namorado (Paul Newman) em «Cortina Rasgada» e Dany Robin trocada por uma cubana com quem o marido (Frederick Stafford) andava amancebado. Traídas, essas mulheres ora eram de uma devoção quase inabalável, ora escolhiam vingar-se com quem se revelava afinal o mau da fita.

Mas essa desqualificação das mulheres ainda é levada mais longe neste «Frenzy», que se projeta na sessão desta quinta-feira: as personagens Brenda e Babs, são aqui assassinadas por um serial killer com requintes de particular malvadez. Houve críticos, que consideraram nunca Hitchcock se ter até então arriscado a patamares de tal violência, mesmo considerando a cena da morte do agente leste-alemão em «Cortina Rasgada». Mesmo Janet Leigh em «Psico» ou Tippi Hedren, assaltada pelas aves de «Os Pássaros», não se tinham sujeitado a tal demonstração de sadismo. Mas o Mestre andava por esta altura algo desconcertado com o rumo dos acontecimentos à sua volta e, em particular, com o que poderia ou não representar um êxito de bilheteira. Daí a pulsão para experimentar soluções cinematográficas até então tratadas com outra subtileza nos filmes anteriores.

Essa sensação de se ver dissonante de quantos o rodeavam está, igualmente, explicita no seu cameo: para não passar despercebida a mensagem, que por ele costumava transmitir, inseriu-o logo no início do filme - três minutos depois do primeiro fotograma! - e em que é um dos espectadores do discurso de um político sobre a necessidade de limpeza do Tamisa. Todos aplaudem o orador, exceto ele, demonstração eloquente do seu isolamento em relação à  ditadura do pensamento único.

Mas, se Hitchcock gostava de revelar o que lhe ia na alma através destas sugestivas exposições da sua pessoa em pequenos segundos inseridos em cada filme, também se o deteta no divertido trailer então apresentado nos cinemas, que o iriam exibir: começando por aparecer a flutuar nesse mesmo Tamisa (como vimos, sinónimo de sujeira), ele avisava que ainda tinham de contar com ele, que ainda não se afundara apesar de serem outros os tempos, totalmente diferentes o gosto dos críticos e do público.

Quanto à estória, retoma a fórmula bem sucedida de outros títulos do passado: «Intriga Internacional», mas também o emocionante «39 Degraus» que, em 1935, constituíra ao mesmo tempo o melhor título da sua fase inglesa e a despedida desta última, porque entretanto fora atraído pelos dólares de Hollywood. Temos assim um protagonista, Richard Blaney, outrora piloto de caça, mas agora barman despedido por se ter afeiçoado demais aos copos de que se servia. Será ele a vítima de uma maquinação, que dele faz vítima, mas o leva a ser tido como o algoz pela polícia, que o prende e se apresta a levá-lo à condenação em tribunal.

Para as autoridades não sobram dúvidas: antes de se divorciar, a mulher não o acusara de violência doméstica? Quem teria, pois, maior motivo para depois a assassinar, tanto mais que a procurara na véspera, embriagado e com intenções violentas?

E, já denunciado na imprensa como inimigo público, quem teria maior ensejo em violar e matar a antiga colega do pub, que o ajudara momentaneamente a escapar à perseguição de que se vira alvo?

De súbito todas as provas o tendem a condenar, crescendo a histeria coletiva em torno do maníaco da gravata, peça de vestuário utilizada para estrangular as suas vítimas. Muito terá de se esforçar para desmascarar quem depressa vem a identificar como o verdadeiro autor de tais crimes.

No entretanto, e enquanto espectadores, temos a possibilidade de apreciarmos um excelente travelling durante toda a cena do segundo crime, quando a câmara se afasta do homicida e da sua vítima descendo a escada do prédio e saindo para a rua, deixando subjacente a violência do que se passava no andar acima. Nesse sentido ela constitui o oposto do que Hitchcock escolheu para mostrar no primeiro crime, uma sequência violenta onde convirá dar atenção aos olhares, ao ritmo e aos ruídos. Noutras cenas o realizador dá-se ao prazer de explorar os efeitos emocionais sugeridos pelos silêncios.

Retomando o tema inicial, o do relacionamento equívoco de Hitch com as mulheres, este é também um filme em que se deteta o quanto o coito intimida o autor: explicita o suposto fantasma feminino do desejo de violação  na reação da criada de um restaurante, que cora de prazer quando lhe contam como, antes de ser assassinada, uma das vítimas fora abusada, uma mulher recita o Pai Nosso durante o coito, filmam-se mulheres nuas e violentadas à luz dos faróis dos carros, mostra-se uma mão a repor pudicamente a alça de um soutien. Como anotava um crítico, comparado com  Hitchcock, os fantasmas sexuais de Woody Allen são os de um menino de coro.

Resta anotar que, como de costume, durante a rodagem do filme, Hitchcock andou de candeias às avessas com Jon Finch, o protagonista do filme e que teve de conciliar o trabalho com os problemas de saúde de Alma, a esposa, acometida de um ataque cardíaco, que pouco faltou para se tornar fatal.



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