terça-feira, maio 30, 2017

(DL) A violência de que a Igreja Católica é capaz quando se julga com força para a disseminar

A simpatia por este Papa, que tem dado mostras de querer mudar alguma coisa na Igreja Católica para que tudo fique na mesma - e mesmo essas mudanças de pormenor são objeto de tanta contestação interna, nomeadamente do seu, em princípio, retirado antecessor! -, não nos podem distrair do essencial: sinta-se com força bastante para contrariar o que mais lhe desagrada na sociedade e é vê-la em intensa atividade política e social para impor os seus preconceitos e mundivisões, por muito anacrónicas que possam parecer.
Sabendo-se recatar, quando as circunstâncias lhe são adversas, e afiando as garras quando elas lhe correm a favor (vide o comportamento da Igreja polaca desde a queda do Muro de Berlim!), as instituições religiosas em geral - sobretudo dos credos monoteístas, mas não podemos igualmente esquecer os budistas do Myanmar nem os hindus do Sri Lanka - constituem um dos principais fatores de infelicidade dos povos e incendiários de múltiplas barbaridades.
Em 8 de janeiro de 1949, quando, no âmbito da pré-campanha presidencial de Norton de Matos, Tomás da Fonseca teceu fundamentadas reticências sobre a consistência do mito das aparições em Fátima, não imaginava o quão violentamente seria destratado.
A primeira carta publicada no jornal «República» intitulava-se «Palavras Calmas», que julgava benignas para os dois setores em breve divididos pela pugna eleitoral: “uns para manter o statu quo, outros, constituindo a grande maioria da Nação, no intuito de reconquistar direitos e regalias sociais, há tanto arrebatados por um regime despótico em que a Santa Sé ocupa o lugar de honra.”
Dois dias depois uma segunda carta deveria ter a mesma vida efémera conferida a meros artigos de jornais, mas logo se abririam as hostilidades no dia 11, iniciadas pelo órgão oficial do Patriarcado. Eis como Tomás da Fonseca relata o caso nas páginas de «Na Cova dos Leões» aonde juntaria as sucessivas cartas enviadas ao Cardeal Cerejeira a contestar essa súbita guerra religiosa:
“(…) V. Eminência, melhor do que eu, sabe que não é por actos de violência que se decidem lutas de pensamento. Se invoquei factos e razões, factos e razões deveriam ser alegados contra mim. Não quiseram, visto mandarem à frente 0 tal brigão, com a incumbência de abrir hostilidades com a elegância e nobreza testemunhadas nessas páginas, a que, ja agora, temos de o amarrar. Escreveu aquele, entre outras coisas:
«T. da F... Tem-se a impressão de que costuma disfarçar-se em peanha de S. Miguel... Mesmo já perto da cova, não se perdoa o não ter aprendido nada, nem sequer a mentir com certo decoro... Quem o havia de supor tão actualizado, por detrás daquelas venerandas barbas em que os rouxinóis fazem ninho?»
Referindo-se à segunda carta, que classifica de «insulto ignóbil à consciência católica de Portugal e aos padres que são padres», encontra nela coisas piores ainda, «por ser - diz ele - o ataque mais vil que eu vi, em minha vida, às coisas santas». E prossegue: «Quisera que todos os rapazes cristãos ou simplesmente portugueses lessem até ao fim o artigo... para verem até que ponto foi possível diminuir-se e enlamear-se uma inteligência cega pelo mais torvo dos ódios. Não quero transcrever o chorrilho de blasfémias com que o desgraçado plumitivo se refere à Mãe de Deus. Há baixezas em que uma pena digna não deve tocar. Passando além dos judeus, que crucificando o mestre, não atacaram directamente sua Santa Mãe, este escrito inconcebível é feito contra a própria Virgem Nossa Senhora. Atingem-se no insulto os milhões de portugueses que têm a mensagem de Fátima por alto milagre de Deus. Perante a triste realidade, é preciso que por esse Portugal fora, onde houver um português que traga no peito presente e vivo o Cristo Senhor, se levante de novo, bem alto, um brado de presença. De joelhos em terra, na atitude viril de quem só sabe dobrá-los diante de Deus, atiremos ao Céu nosso clamor vivo de desagravo e amor a Maria - Nossa Mãe. Gritemo-lo bem alto, a preço de tudo, do nosso trabalho e do nosso sangue, da nossa vida e da nossa morte.»
As palavras pouco cristãs do «Novidades», que incitavam a atuar com violência contra o herege, foram depois secundadas por padres de norte a sul do país, com todos os jornais regionais à mistura.
Para a Igreja Católica de então o horror seria o regresso a uma realidade marcada pelos valores republicanos que, durante a I República, a tinham acossado quanto à sua ação viperina. Valendo-se, pois, do respaldo da ditadura fascista, Cerejeira cuidava de eliminar tão lestamente quanto possível uma tradição com raízes no iluminismo pombalino e no laicismo do próprio regime liberal do século anterior, que cuidara de extinguir as ordens religiosas.
Tomás da Fonseca mais não fazia do que dar voz a todos quantos nunca tinham acreditado nos milagres de Fátima e os sabiam mera estratégia para arregimentar em torno do regime fascista os setores mais incultos da sociedade portuguesa. Daí que o seu livro de denúncia das patranhas em que assenta a narrativa cristã seja de enorme atualidade. É que, tal qual diz o povo, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, e dois milénios sucessivos a alindá-la faz da teologia católica um corpo teórico sem qualquer sustentação científica.
As religiões justificaram-se enquanto a Ciência não explicava ou dava expetativas de responder às inquietações humanas dos milénios precedentes. Hoje elas são mero repositório de superstições, que só travam o rumo humano na direção do Conhecimento.

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