terça-feira, maio 16, 2017

(DL) Tempus fugit

Como se contam os mais de sessenta anos, que se viveram tão intensamente quanto se pode, mas passados num ápice?

Quase no final de «Les Années», o romance de Annie Ernaux publicado em 2008, ela reconhece que, logo após a Segunda Guerra Mundial, sentia-se outra de um ano para o outro, porventura mês a mês, enquanto pouco no mundo parecia mudar. Dobrado o cabo do segundo milénio a sensação passou a ser a inversa: ela sentia-se sempre igual enquanto a realidade transmutava-se em contínuas e aceleradas revoluções - tecnológicas, políticas, sociais - cada vez mais difíceis de compreender.

Uma das bem conseguidas soluções de Ernaux para testemunhar tudo quanto até então vivenciara, foi olhar-se de fora como uma personagem tão de si distinta como todas as demais.  Por isso não incorre no risco de uma eventual tentação empática do leitor com essa criança, inicialmente apresentada, depois transformada em adolescente, em jovem mulher, em mãe de família, em mulher divorciada até ao epílogo, quando acaba de se reformar de toda uma carreira profissional dedicada ao ensino.

O distanciamento permite uma compreensão mais racional com tudo quanto vai mudando na França da segunda metade do século XX. Tão só derrotado o nazismo a pobreza ainda imperava na maior parte das famílias, obrigadas à frugalidade e a nada desperdiçarem. Reuniam-se para trocarem estórias sobre tudo quanto tinham vivido, havendo quem ainda partilhasse as memórias da outra Guerra, a que já ficara três décadas para trás. E a atenção prendia-se, igualmente, às vicissitudes da Volta à França, que fazia parar conversas e alterar todas as rotinas.

Os anos 50 tinham trazido os primeiros sinais da prosperidade, que tenderia a acentuar-se nas décadas seguintes com os filhos a conseguirem subir patamares no ascensor social. Mas esses tinham sido também os tempos revoltos da guerra da Argélia e do terrorismo da extrema-direita.

Ernaux dá à protagonista uma perspetiva de esquerda e é nela que os acontecimentos seguintes vão sendo balizados: Maio 68, os anos Mitterrand, o regresso da direita a um poder, que, na realidade nunca deixara de ver aplicados os seus valores, mesmo que sob a falsa capa socialista. As ferramentas de trabalho ou de entretenimento foram mudando, desde a televisão, que causara uma minirevolução nos hábitos e nas conversas do dia-a-dia até ao computador. E os conceitos de sexualidade e de família conheceram paralela transformação: se em criança a protagonista vivia num ambiente em que as raparigas tinham de chegar virgens ao casamento, que seria compromisso para toda a vida, chega à maturidade com a libertação sexual a possibilitar relações mais descomprometidas e o divórcio como corolário quase obrigatório para quem arriscara as primeiras núpcias.

«Les Années» retrata um destino pessoal, mas também o coletivo, no que ele tanto se alterou, que se torna quase impossível  encontrar algo que tenha conseguido manter-se inalterado nesses sessenta anos.

Tempus fugit, proclamava Virgílio e sempre assim terá sido. Os cabelos embranquecem-nos, as rugas marcam-nos os rostos, as articulações queixam-se, mas, tal qual Ernaux, continuamos a espantar-nos com a rapidez com que passámos das crianças que fomos para os velhos, que constatamos ser...

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