quarta-feira, maio 24, 2017

(DIM) «Intriga em Família» de Alfred Hitchcock

Em 1976, quando iniciou a rodagem de «Intriga em Família», Alfred Hitchcock sentia-se muito debilitado e Alma, a esposa e sua imprescindível metade criativa, ainda combatia um cancro na mama entretanto identificado. Não admira que pressentisse tratar-se do derradeiro filme da sua filmografia, o testamento. Isso mesmo está explicito no tradicional cameo, algures quando já passaram 40 minutos desde o primeiro fotograma, e em que vemo-lo a entrar numa Conservatória para Registo de Nascimentos e Óbitos obviamente como prenúncio da declaração do seu próprio fim.
Não se trata, no entanto, de um filme amargo: pelo contrário até é uma comédia divertida, com algo de traquinice infantil. Se anos antes, ele já ensaiara esta estratégia criativa no delicioso «O Terceiro Tiro» (um dos meus filmes preferidos dele, embora dos menos conhecidos!), repete-a agora quase da mesma forma: se nesse título anterior só havia um cadáver, que se ia enterrando e desenterrando, mas acabando por se concluir que não existira nenhum crime, agora nem sequer ele existe apesar das cenas num cemitério, incluindo um enterro.
O seu típico suspense  já aqui não consta: por esses anos o cinema, nomeadamente de terror, usara e abusara tão intensamente do método de segurar o espectador à cadeira perante a iminência de algo de terrível a acontecer na tela, que o Mestre abdicou simplesmente de o utilizar. Uma das poucas exceções ocorre numa cena bastante engraçada em que o casal de vigaristas simpáticos anda a discutir, com ele ao volante a virar-se sucessivamente para ela e chegamos a temer um acidente, que Hitchcock resolve numa brusca travagem.
Persiste, porém, no recurso ao jogo de enganos, das aparências, dos equívocos entre dois casais dispostos a espreitarem-se uns aos outros, mas levando tempo demais a esclarecerem-se.
Para que a estória melhor funcione ele utiliza estereótipos opostos na definição dos dois casais. Num deles é a mulher quem prevalece sobre o homem, orientando-o, instando-o a agir. Ela é uma falsa vidente, que engana velhas senhoras, quanto à possibilidade de comunicarem com o Além com uma bola de cristal, e ele um modesto motorista de táxi.
O outro casal é sofisticado, embora com uma natureza intrinsecamente criminosa: ele apossa-se de joias valiosas a coberto da sua loja de fachada dedicada a esse negócio, enquanto ela é a amante, que colabora com ele pelo gosto do risco, pela vontade em subverter os códigos morais. Podemos verificar neles uma típica opção do realizador para dar ao espectador uma piscadela de olho informando-o quando estão a mentir ou a oferecer-nos a sua verdade: se aparentam uma conversa entre um suposto vendedor e uma cliente normal, filma-os de perfil; se, pelo contrário, em surdina, combinam mais um dos seus planos criminosos, já estão virados para a câmara a mostrar-nos a sua verdadeira face.
Vimos, igualmente, pelos filmes anteriormente exibidos neste ciclo, que a relação de Hitchcock com a sexualidade costuma ser bastante explicita na perversa contenção dos seus próprios fantasmas. Aqui temos a vidente a mostrar um voraz apetite sexual, que o companheiro tem bastante dificuldade em satisfazer.
Como de costume não foi um filme pacífico de rodar pela difícil relação de Hitchcock com os atores: dado que Al Pacino - que desejara para o papel de George - se tornara, entretanto, demasiado caro, e Jack Nicholson preferiu rodar «Voando Sobre um Ninho de Cucos», foi convidado Roy Thinnes, muito conhecido pelo papel de David Vincent na série televisiva «Os Invasores». Uma semana depois estava despedido por o Mestre o julgar incompatível para tal desempenho. Felizmente Bruce Dern substituiu-o e são muitos os estudiosos da obra de Hitchcock, que o consideram a melhor alternativa relativamente a todos quantos tinham sido considerados para tal papel.
Para a Mme Blanche também a produção considerara a possibilidade de escolher Liza Minnelli ou Goldie Hawn. A entrega do desempenho à histriónica Barbara Harris foi muito feliz, como se comprova no reconhecimento coma nomeação para o Globo de Ouro desse ano quanto à melhor interpretação feminina.
Para o papel da sofisticada Fran, o desejo do realizador era vê-la representada por Faye Dunaway, que acabara de ter assinalável sucesso com «Chinatown» de Roman Polanski. Mas, desperdiçando a oportunidade de participar num filme de Hitchcock, ela recusou o papel por não ter suficiente protagonismo para si. Uma vez mais, foi mal que veio por bem, porque Karen Black é excelente, tornando-se memorável a cena em que um piloto de helicóptero lhe afiança que a pistola por ela empunhada não tem qualquer bala e friamente o alveja tangentemente enquanto acabam de descolar do  local onde tinham recebido o resgate por um rapto.
Uma referência final para a piscadela de olho do final, quando a vidente olha para os espectadores e acaba por deixar a ambiguidade quanto à natureza dos seus poderes. Será que, apesar de iconoclasta, sobrava em Hitchcock a esperança num Além? Esse epílogo presta-se às mais diversas leituras.

(O filme de Hitchcock será projetado amanhã, dia 25 de maio, no Cineclube Gandaia da Costa da Caparica, às 21 horas)



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