sábado, janeiro 14, 2017

(NOS) Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

Há lá maior suplício, que o da espera? Por exemplo o dos condenados nos corredores da morte, que veem frustrados os esforços dos advogados em conseguirem-lhes as revisões nos processos, e, depois, os pedidos de clemência a esbarrarem na inflexibilidade dos governadores eleitos por quem acredita na regra do olho por olho…
E, no entanto, quantas vezes os que entraram naquele exíguo espaço se transformaram por conta do estudo ou da descoberta da fé? Quase se diria possível a redenção pelo uso do medo das consequências de atos muitas vezes impensados, apenas resultantes de momentânea e descontrolada pulsão para a violência extrema?
A escassos dias da ingestão da mistura letal um prisioneiro olha para a câmara que o filma e formula o desejo de ver o tempo passar-se num ápice.  Para que acabe essa tortura, para colher enfim o almejado descanso.
Outro modo de esperar pode ser o de quem de mal apenas fez a ocupação de espaços de ninguém e ali assentou vida, construindo casas e famílias, como sucedeu com os antigos habitantes das ilhas e ilhotes da ria Formosa.
Nas semanas que se seguiram à Revolução de Abril o impossível tornara-se numa realidade. E aquelas terras de ninguém estavam mesmo ali a jeito para lhes facilitarem o quotidiano vivido na pesca. Quem lhes diria tratar-se de uma ilegalidade? O que era proibido numa época em que os latifúndios e as empresas eram ocupadas por quem via chegado o momento de fazer dos antigos escravos os donos dos meios de produção?
Começaram-se depois a ouvir as ameaças. Primeiro dos que defendiam o regresso ao respeito pela propriedade de quem antes a tinha e por isso a recuperava, o que não era propriamente o seu caso. Depois vieram os ecologistas e acusá-los de crimes contra o ambiente, por porem em causa os direitos das aves em emigração.
Então os bichos tornavam-se mais importantes do que os homens? É que pouco mal fariam aquelas construções meio abarracadas, onde a água, a luz e os esgotos entretanto acedidos por toda a população da cidade, era ali uma miragem.
Passaram anos na espera de verem chegadas as gruas, os caterpillars. É amanhã, é depois? E sempre aquela angústia de verem anos de felizes recordações reduzidas a escombros, por muito que as tivessem copiado para álbuns de fotografias ou para velhos filmes em super 8.
Um dia as gruas e os caterpillars vieram mesmo e dali foram forçados a sair. De quase todos se perdeu o rasto, exceto do casal, que costumava recolher os cães e os gatos vadios e a todos alimentava. Exilados em casa alugada na serra reconheciam, um par de anos depois, ter sido essa a sua sorte. Porque a qualidade de vida melhorara e tinham-se liberto da inquietação permanente quanto a um futuro, que não adivinhavam tão sereno…
Mas ainda outro tipo de espera consegue ser igualmente insuportável. Como a que Dmitri sentira naquelas muitas noites de 1936 e 1937 em que os amigos iam desaparecendo, noite após noite, levados pelos enviados do Poder e ele punha-se na escada do prédio em que vivia, a mala ao lado com as roupas a levar para o possível gulag onde lhe calariam as composições denunciadas como formalistas e cosmopolitas, mais apropriadas para burgueses do que para a dinâmica classe operária.
Azar o seu de ter tido Estaline a ouvir-lhe a Lady Macbeth de Mtensk mesmo por baixo das percussões, e elas nessa noite terem-se excedido em decibéis, muito para além dos que congeminara quando os vertera para a pauta.
O editorial do Pravda fora atemorizante. Viesse a crítica na terceira página e poderia almejar à sobrevivência após doloroso período na prisão. Ter texto assim na capa significava habitualmente ter a vida em risco.
Noite após noite, enquanto ia fumando cigarro após cigarro, e a família dormia sobressaltada no apartamento, Dmitri escutava cada ruído na entrada do prédio e perguntava-se: «é agora que vêm buscar-me?».
Muitos anos depois continuava sem compreender, porque escapara quando tantos amigos tinham desaparecido, muitos deles fuzilados por não mostrarem o esperado entusiasmo pela revolução, há muito travada no seu curso e pervetida em algo tão diferente do que haviam ansiado na noite da ocupação do Palácio de Inverno.
Já velho, Dmitri recordava esse passado e via nele a razão porque nunca mais se curara dos medos, desde então seus fiéis e indesejados companheiros…

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