quarta-feira, janeiro 18, 2017

(DL) «Sonho de uma Noite de Verão» de William Shakespeare no Cineclube Gandaia


Há quem diga que todas as noites são de sonhos.  Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.”

No ciclo sobre as obras de William Shakespeare, que o Cineclube da Associação Gandaia anda a programar para as noites das 5as. feiras no Cinema Impala da Costa da Caparica, exibe-se amanhã às 21 h o filme «Sonho de uma Noite de Verão», comédia representada pela primeira vez entre 1595 e 1596, provavelmente escrita por ocasião de um casamento aristocrático, como é explicado pelo seu aspeto de epitalâmio.
Na Grécia Antiga estas peças líricas consistiam num elogio público e solene, dirigido ao conjugue de maior condição social, sob a forma de invocação aos deuses para que concedessem aos noivos a felicidade eterna.
«Sonho de uma Noite de Verão» acontece inteiramente no intervalo entre o anúncio do casamento de Teseu, duque de Atenas, com Hyppolita, rainha das Amazonas, e o efetivo início das festividades, tendo a curiosidade de incluir a representação de uma peça de teatro por artesãos em honra do seu duque (5º ato).
É uma comédia de fantasia desbragada, a misturar diversas intrigas habilmente misturadas, ora cómicas, ora cingidas ao seu lado fantástico. Se é tão conhecida e referenciada é por constituir um dos melhores exemplos da extraordinária imaginação do autor.
Uma comédia de imensa fantasia
Na corte de Atenas os jovens príncipes Hermia e Lisandro tentam comover o duque Egeu, pai dela, que lhe quer impor o casamento com Demetrius, por seu lado, amado por Helena.
A lei imposta por Teseu é inflexível: eles devem obedecer à vontade paterna, decisão que o par de apaixonados decide desrespeitar fugindo para a floresta logo que a noite chega, sendo perseguidos por Demetrius e Helena.
A floresta é o espaço simbólico do proibido e do caos mas, ao mesmo tempo, o reino onde habitam fadas e génios, que reproduzem ali a estrutura social da corte. Igualmente ali se encontram os artesãos de um grupo de teatro amador contratados para interpretarem uma peça de teatro na festa de casamento do duque e de Hyppolita.
No início do segundo ato, Oberon e Titania, respetivamente rei e rainha do reino das fadas, disputam a posse de um pequeno pajem. Oberon decide vingar-se de Titania fazendo-lhe uma partida: ordena ao seu génio Puck que verta um filtro do amor nos olhos da rainha para que se apaixone pela primeira criatura por ela vista ao despertar. O «sortudo» será o tecelão Bottom, do grupo teatral, a quem Puck impusera uma cabeça de burro.
Oberon decide ajudar os jovens atenienses encarregando Puck de administrar o mesmo filtro nos olhos de Demetrius para que ele se enamore de Helena. Só que engana-se na identidade dos príncipes e toma Lisandro por aquele, criando uma tal confusão, que Helena não tardará a ver-se ardorosamente cortejada por ambos para inveja da preterida Hermia.
No final do terceiro ato a confusão está no seu clímax: a rainha das fadas apaixonada por um monstro e os dois príncipes prontos para se matarem na disputa por Helena.
Oberon atenta na situação e intervém para resolvê-la fazendo com que os atenienses adormeçam e voltem a despertar com a pessoa certa à sua frente. Acorda, igualmente, Titania para troçar dos efeitos nela operados pela magia.
Quem acorda os quatro foragidos é Teseu e Hypollita, que tinham decidido partilhar uma caçada na floresta.  Ainda mal acordados, aqueles julgam estar ainda a sonhar, mas obtêm a clemência do duque para os seus amores contrariados. Bottom, também desperta devolvido à forma humana e reencontrando os amigos.

O quinto ato é consagrado à representação da peça dos artesãos em honra do triplo casamento em breve abençoado pelas fadas, que nos surgem quando todos os noivos e noivas já saíram de cena.
Uma reflexão sobre o teatro
Esta é uma peça inclassificável onde o maravilhoso e o cómico se disputam. Constitui uma meditação sobre os poderes do sonho e da imaginação face às leis arbitrárias  e por isso mesmo uma teatralização da intuição do inconsciente.
A floresta é o espaço onde os jovens escapam aos rigores das leis familiares e civis mas igualmente o das paixões mais descontroladas.
As experiências radicais de uma rainha apaixonada por alguém com cabeça de burro ou triângulos, quiçá retângulos amorosos, normalizam-se com o regresso à vida real quando todos despertam e já exorcizaram as tentações havidas durante os sonhos.
Devolvidos à corte ateniense os jovens reajustaram-se às regras da vida social só conservando uma longínqua reminiscência dos acontecimentos noturnos.
Estamos, sobretudo, perante uma interessante reflexão sobre o teatro através da peça dos simpáticos artesãos, que criam uma “peça dentro doutra peça”, através da qual retomam, na forma burlesca, o tema do amor contrariado.
Shakespeare troça assim da conceção ingénua da arte teatral, por ele entendida como excessivamente realista. Por exemplo os artesãos empenham-se em destruir qualquer ilusão dramática para evitar que o público se aterrorize com o falso leão, que não é senão um ator vestido com um fato capaz de sugestioná-lo na pele de um animal.
Este cena burlesca, que é uma das mais divertidas em toda a obra do autor, reforça o contraste entre a ilusão e a realidade, que permite suscitar a empatia do público com tudo quanto antes se passara.
Shakespeare está aqui no cume da sua arte: tudo é representável, mesmo o mágico e o sobrenatural, através do desafio imposto à imaginação do espectador.  Porque assim o declara Teseu no seu conhecido discurso do quinto ato, os poderes da imaginação, do poeta, do amante ou do louco, tornam possível passar da terra para o céu e vice-versa., conseguindo-se pela sua mera evocação dar existência ao que está ausente: “Tal como a imaginação dá corpo ao desconhecido, a pluma de um poeta dá-lhes uma figura e confere a essas bolhas de ar um lugar no espaço e um nome».

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