sexta-feira, janeiro 27, 2017

(DL) Xerazade em África

Há alturas em que um escritor conhece inesperadas experiências reveladoras da imprevisibilidade de tudo quanto o rodeia. É o que se conclui da entrevista a Mia Couto, inserida na mais recente edição do «Jornal de Letras».
Segundo aí conta, numa sessão literária decorrida no Brasil, assistiu à apresentação do momento musical de uma sua compatriota chamada Chope. Ora, quem anda a ler a Trilogia «As Areias do Imperador» sabe ser esse o nome de uma das muitas etnias subjugadas pelos vátuas de Ngungunyane (sim, ele era o opressor de várias etnias locais!)
A iniciar a sua atuação, a rapariga contou uma lenda segundo a qual uma mulher fora aprisionada pelos guardas de Gungunhana e se salvara com estratagema semelhante ao de Xerazade: propôs-se cantar ininterruptamente para o seu carcereiro. Mas, sempre que concluía uma canção, dava dois passos à retaguarda antes de iniciar a seguinte.
Levados pela demonstração, que julgavam ter um cunho exclusivamente artístico, os guardas deixaram-na afastar-se o suficiente para ela lhes fugir e escapar assim à morte anunciada.
Ora, no espetáculo em honra de Mia Couto, a jovem cantora mimetizou esse mesmo comportamento: cada canção significou dois passos atrás no palco até dele desaparecer.
«Foi um momento mágico!» - concluiu o escritor moçambicano.

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