domingo, janeiro 22, 2017

(DL) As cartas que Fernando Pessoa teria escrito a Sá Carneiro

O talento de Pedro Eiras tarda em ser reconhecido apesar da vasta bibliografia, sobretudo como dramaturgo e ensaísta. Embora não lhe faltem leitores nos meios universitários, já mais difícil tem sido a divulgação das suas obras junto dos a eles alheios.
«Anais da Pena Ventosa», publicado em 2001, foi o primeiro romance que lhe li.  Além da inequívoca qualidade literária, propicia um conhecimento da época do Condado Portucalense com uma profundidade difícil de igualar. Exigindo lenta leitura, porque procurou-o escrever como se se tratassem de documentos da época, Eiras transformava-se numa espécie de zelig literário capaz de se integrar nesse ambiente medieval e dele reproduzir fielmente a forma de falar e os usos e costumes dos seus personagens, como se sempre nele tivesse vivido.
Essa mesma capacidade está, igualmente, no mais recente romance: «Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá Carneiro». Acaso desconhecêssemos que se trata de obra ficcional, acreditaríamos na genuinidade dessas cartas e postais de Fernando Pessoa para o seu amigo durante a estadia deste em Paris entre julho de 1915 e abril de 1916. Porque Eiras consegue credibilizar a prosa como se fosse o escritor dos heterónimos a redigi-la.
Embora ainda me sobre ler dois terços do romance já posso concluir o quanto nos ajuda a compreender, não só a natureza da relação de amizade em causa, mas também a dificuldade em prosseguir a publicação da revista «Orpheu», quando o seu terceiro número estava à beira de se frustrar por escusa do seu contrariado mecenas: o pai de Sá Carneiro.
No extrato em anexo sente-se-lhe a preocupação em animar o amigo, cujas dificuldades afetivas e financeiras agravavam a falta de autoestima justificativa do ulterior suicídio.
Explicita-se, igualmente, a antipatia de Pessoa pelo cubismo e o futurismo, muito particularmente por Marinetti, quase tão execrado nas suas cartas e postais como Afonso Costa.
Era notória essa aversão de Pessoa pelo republicanismo, no que constitui um estranho paradoxo em quem queria olhar, sobretudo, para o futuro, dele presumindo a acelerada transformação suscitada pelos avanços tecnológicos. A ideia monárquica, que lhe era simpática e veria assumida por Sidónio Pais, a quem incensaria de Presidente-Rei, não deveria ser dissociada de paradigmas a contracorrente dos por si defendidos. Mas não se encontra fácil explicação no facto de, através das múltiplas personalidades, ser ele próprio e outros de si tão distintos?

Extrato:
Lisboa, 1 de Setembro de 1915
Meu querido Sá-Carneiro:
Por que duvida você do valor da sua obra? Que ouvidos tem dado a quantos não entendem o que escrevemos, pois nada neles existe com que entender? Os bonecos de palha, por mais elegantes que pareçam por fora, serão sempre de palha por dentro. Não perca tempo com os Dantas, os Bruns, os Cristos Filhos, a tur bamulta de cabeças bem pensantes debitando a cartilha... Nós escrevemos as saudades dos tempos futuros e as cores que foram gente, o além-Deus e a alma que foge pela Torre Eiffel acima... E você quer que esses merceeiros de romances nos entendam?
Não nos devemos aos outros, senão a nós próprios. Por mim, nem estou com disposição de escrever frases belas, que agradem e conciliem, mas as frases exactas do meu pensamento. O preço a pagar é a eterna solidão que dura este entreacto? A solidão mil ve zes, então, Sá-Carneiro, e o orgulho da alma incorrupta.
Deixe a dúvida para os dias da vida, e a incerteza; mas ao es crever seja para si próprio o deus que não há, na insolência de criar o universo.
Um abraço do seu saudoso
Fernando Pessoa

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