domingo, janeiro 08, 2017

(DIM) «45 anos», um filme de Andrew Haigh

Numa das mais belas canções de Jacques Brel - «La Chanson des vIeux Amants» - os primeiros versos dizem logo à partida o que é sabido por qualquer casal com muitos anos de história em comum: pelo meio terão existido umas quantas tempestades.
Prestes a celebrarem quarenta e cinco anos de casados Kate e Geoff têm essa consciência, mas já se julgam instalados na serena quietude de quem venceu todos os obstáculos e usufrui a felicidade possível nos anos que restam. É nesse estado de alma, que ela está prepara a festa comemorativa da efeméride depois de não ter sido possível fazê-lo cinco anos antes, quando ele terá estado demasiado doente para poderem sequer pensar em tal.
Mas se a semana se anuncia exaltante no melhor dos sentidos, ela começa por ser perturbada logo na segunda-feira de manhã, quando o carteiro traz correspondência para Geoff vinda da Suíça.
A notícia que lhe chega é surpreendente: ao fim de cinquenta anos, e por causa do degelo dos glaciares, as autoridades terão encontrado o cadáver congelado de Katya, a namorada, que lhe desaparecera em 1962, quando andavam a tentar a escalada de uma montanha. Ora, como Kate não tardará a compreender, o amor de Geoff pela reaparecida, mesmo que na forma de cadáver bem conservado, seria bastante mais superlativo do que o a ela manifestado.
Os dias seguintes são de crise cada vez mais intensa entre ambos: ele volta a fumar, procura vestígios de Katya nas coisas há muito esquecidas no sótão, chega a indagar os custos de uma viagem à Suíça.
Mesmo tratando-se de uma relação afetiva ocorrida antes de o ter conhecido, os ciúmes de Kate tornam-se avassaladores: além da semelhança dos nomes (que o argumento só sugere sem a acentuar) e da cor dos cabelos, ela só pode sentir-se como alguém a quem Geoff dedicara atenção por constituir uma réplica da desaparecida. Com uma vantagem de monta para esta última: quando tivera o acidente estava grávida, algo que nunca lhe acontecera ao longo de todos aqueles anos. Por isso, numa das noites dessa semana, Kate faz ao marido a pergunta decisiva para a qual só quer um sim ou um não: acaso Katya não sofresse o acidente, teria acabado por casar com ela?
É esse sim, que faz desmoronar todas as certezas de Kate em relação às quatro décadas e meia partilhadas com Geoff. Porque as sente como uma mentira de irreversível redenção. Mais do que o ciúme é uma fratura, um brusco esmagamento de quem sempre foi. Como se tivesse sido acometida de um vírus capaz de lhe destruir a memória e todas as boas recordações nela ciosamente conservadas.
Quando Geoff toma consciência dos danos causados pelo retorno daquele fantasma do seu passado e tenta remediar a situação, é demasiado tarde: enquanto se deixa conduzir por ele ao som de Smoke gets in your eyes no baile da festa, que preparara, Kate não consegue vencer a desilusão. Julgara-se a “eleita”, e mais não fora do que uma “dupla”, uma “réplica”. E isso é algo que não cicatrizará na sua ferida identidade…
O argumento não convence totalmente nas dúvidas quanto às inverosimilhanças de que padece, mas os atores, uau, oh que atores!: Charlotte Rampling e Tom Courtenay fazem aquilo de que os sabemos capazes tantas vezes nos ofereceram a comprovação do seu talento! E é na apreciação dos pequenos gestos, dos silêncios e frases deixadas a meio, que «45 anos» mais impressiona...

 

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