segunda-feira, outubro 10, 2016

(V) «Nome de código: Sonata ao Luar» de Axel Fuhrmann (2014)

Sei que sou intransigente nos juízos, mas nunca me passará pela cabeça ler Céline, autor do tão celebrado »Viagem ao Fim da Noite», porque o sei abjeto colaboracionista dos ocupantes nazis e autor de textos odiosos contra os judeus, cujo morticínio implicitamente aprovou. Como, depois de um deslumbramento inicial com «Esplendor na Relva», deixei a adolescência já a maldizer Elia Kazan, cuja colaboração com a comissão do senador McCarthy nunca poderá ser objeto de absolvição.
Com Ellie Ney passa-se algo de semelhante. Apesar de, no início do século XX, ter desmentido o preconceito segundo o qual  as obras de Beethoven eram demasiado complexas e enérgicas para poderem ser interpretadas por uma mulher, o seu comprometimento com o nazismo foi voluntário, entusiasmado e jamais objeto de qualquer distanciamento posterior. 
Bem pode ter sido uma das mais talentosas pianistas de então a ousar a execução das principais peças para piano do compositor, que a aposta em tornar-se na embaixatriz cultural do III Reich  lançou-lhe um anátema, que não a afetou tanto em vida como deveria ter acontecido.
De facto, se no final da 2ª Guerra Mundial os norte-americanos proibiram-na de atuar em salas de concerto, ela optou pelo órgão de uma igreja da Baviera até os governos da Alemanha Ocidental a recuperarem e celebrarem, apesar da sua conhecida ligação a movimentos de extrema-direita. Em 1968, quando morreu com 85 anos, até teve direito a funeral de Estado como se o seu comprometimento com os crimes do passado já tivessem sido esquecidos.
Ellie Ney foi, pois, o tipo de mulher capaz de se comover com as peças compostas por Beethoven - organizando-lhe até um festival anual em Bona apoiado por Hitler para equivaler ao de Wagner em Beyreuth - e ser cúmplice, sem remorsos, de todo o morticínio suscitado pelo chanceler que ela tanto adorava, tanto mais que rivalizava com Leni Riefensthl ou com Winifred Wagner no apoio ao antissemitismo.
O documentário de Axel Fuhrmann recorre a fotografias, filmes de arquivos e testemunhos de quem a conheceu ou estudou, para mostrar como ela adotou Beethoven como seu ídolo artístico e Hitler como o líder político em quem confiou a sua carreira.

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