sábado, outubro 29, 2016

(DL) John Banville, «O Mar» (V)

O romance de John Banville encaminha-se para as páginas finais, aquelas em que iremos esclarecer a forma misteriosa como o começara: “Foi no dia da estranha maré que os deuses partiram.(…) Depois daquele dia nunca mais voltei a nadar.” 
Pressentimos algo de trágico, mas nada nos prepara para o desenlace que John Banville nos irá prodigalizar. É que, a trinta páginas de distância, ele parece concentrar o narrador-protagonista no progressivo distanciamento em relação à sua defunta mulher: “Pensava em Anna. Obrigo-me a pensar nela, faço-o como um exercício. Está enterrada em mim como uma faca e, no entanto, começo a esquecê-la. O quadro que guardo na memória começa já a esboroar-se, pedacinhos de pigmentos, pequenas partículas de folhas de ouro vão-se desprendendo, quebradiços. Será que um dia a tela inteira vai ficar vazia?” (pág. 136)
O valor que de si sentira estava ligado a ela, porque agora não podia deixar de menosprezar-se: até a suposta monografia de Bonnard, que era suposto estar quase concluída, não passara das primeiras páginas: “Sempre fui um evidente zé-ninguém, cujo maior anseio era ser um não tão evidente alguém. Sei o que digo. Percebi imediatamente que Anna era a operadora da minha transmutação. Ela era o espelho de fora em que todas as minhas distorções desapareceriam.” (pág. 137)
Antes de mergulhar nas memórias da sua distante puberdade, Max conclui o balanço de toda a sua experiência conjugal: “Anna e eu fizemos o melhor que pudemos. Perdoámos um ao outro tudo o que não éramos. Que mais se podia esperar neste vale de tormentos e de lágrimas? (…) Porém, e a despeito de tudo, não consigo libertar-me da convicção de que houve qualquer coisa em que falhámos, de que houve qualquer coisa em que falhei, só que não faço ideia o quê” (pág. 139)
Uma tarde o jovem Max surpreende uma cena em que julga ver Rose confessar a Connie Grace o seu amor pelo pai das crianças, a quem servia de perceptora, sem que visse na “rival” uma reação emotiva. E conta-o a Chloe e a Myles. Agora, à distância de meio século olha para o desenlace com outra perspetiva: “Não posso deixar de especular que aquilo que aconteceu no dia da estranha maré foi de algum modo uma consequência da paixão secreta de Rose”. (pág. 148).
Nesse dia, depois de apanhar Chloe em flagrante jogo erótico com Max, Rose pretende castiga-la, mas a rapariga e o irmão fogem-lhe para a beira de água, entram oceano adentro afastando-se sem intenção de retrocederem: “Estavam agora os dois muito longe, tão distantes que pareciam dois pontos lívidos entre o céu pálido e o mar ainda mais pálido e depois um dos pontos desapareceu. Depois disso, tudo se precipitou muito rapidamente, refiro-me ao que pudemos presenciar. Um esparramar de água, um pequeno esguicho de água branca, mais branca do que a que está à volta, e depois mais nada. O mundo indiferente a fechar-se”.  (pág. 154).
Esse primeiro encontro com a morte deixara o jovem Max aturdido: “quais eram os meus sentimentos? Creio que o sentimento mais forte era de pavor, pavor de mim próprio, pois tinha conhecido duas criaturas vivas que agora, subitamente e assombrosamente, estavam mortas, Mas acreditaria eu que estavam realmente mortas? No meu espírito pairavam suspensas num vasto espaço luminoso, de pé, com os braços enlaçados e os olhos muito abertos, olhando gravemente à sua frente os abismos infinitos da luz”  (pág. 155)
Só quando a filha de Max o vem buscar à Casa dos Cedros depois de sofrer um grave traumatismo craniano na sequência de uma bebedeira, que o levara a ser encontrado inconsciente à beira-mar, é que o leitor percebe que Miss Vavasour, a sua anfitriã, é Rose. Ela contara-lhe, entretanto, que os Grace pouco tinham sobrevivido aos filhos: Carlo sucumbira a um aneurisma e Connie a um acidente de viação. Essa mesma Connie, que o jovem Max não compreendera ser o verdadeiro foco da paixão de Rose, como já tinha sido da dele próprio.

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